segunda-feira, 9 de março de 2015

A BATALHA DO CHILE: UM DOCUMENTÁRIO QUE CAPTA AS TENSÕES ENTRE O GOVERNO DE ALLENDE E O PODER POPULAR





Recentemente, uma amiga esteve no Chile, a turismo. Ao chegar por lá no dia 11 de setembro, percebeu que era feriado nacional. Se entristeceu, dizendo: “Ora, mas os EUA têm poder mesmo. Até no Chile decretaram feriado por conta do atentado às torres gêmeas?”.

O que ela não sabia é que o feriado no Chile não está relacionado ao 11 de setembro de 2001, mas ao 11 de setembro de 1973, quando o governo de Salvador Allende foi derrubado por um golpe das forças armadas liderado pelo general Augusto Pinochet.

Se há algo muito pouco estudado no ensino básico brasileiro é a experiência chilena durante este governo da Unidad Popular, encabeçado por Salvador Allende.

Não é nossa intenção discutir todas as questões do tema, mas simplesmente indicar este excelente documentário feito pelo chileno Patricio Guzmán. Trata-se de um dos principais documentários políticos que eu já assisti. Ele tem vários problemas, como por exemplo, a narrativa do narrador que, por vezes, direciona demais a interpretação do processo chileno.

Mas, fora isso, é especialmente brilhante o modo como capta a voz dos trabalhadores chilenas, como estavam organizados em seus organismos de poder popular e como interpretavam seu papel e o momento em que viviam.

O que penso que seja realmente grandioso neste filme, e que aparece especialmente na PARTE II e III, é o modo como consegue captar as tensões existentes entre os mecanismos de poder popular (as organizações diretamente gerida pelos próprios trabalhadores, tais como os cordões de fábrica, os conselhos comunais, etc.) - que a partir dos lockouts (boicotes da burguesia) começaram a organizar diretamente a produção e distribuição, vinculando a democracia das fábricas à auto-organização dos trabalhadores nos bairros – e o governo popular do “compañero” presidente Salvador Allende.

Essa tensão aparece na documentação histórica em distintos momentos. Embora Allende seja efetivamente querido pelos trabalhadores, na medida em que estes se organizam e passam a gerir cada vez mais o trabalho e a organização da vida social, começam a exigir do governo uma atitude mais revolucionária.

Os trabalhadores, por exemplo, começam a ocupar as fábricas e fazendas, exigindo mais nacionalizações e mais indústrias e fazendas sob o controle dos trabalhadores. Queriam, assim, resolver o problema da crise de abastecimento e, ao mesmo tempo, retirar o poder econômico das empresas que produziam o boicote.

Porém, o governo começa a frear tais iniciativas. Isso ocorre, por um lado, pelos limites legais institucionais, cujas nacionalizações das fazendas, por exemplo, precisavam obedecer à lei da reforma agrária, e as nacionalizações das indústrias (depois de uma lei criada para isso) deveriam ser submetidas ao congresso. Dessa forma, o poder popular (as organizações de base diretamente controlada pelos trabalhadores) apresenta um desejo de ir para além do limite institucional. Para tanto, apresentam uma alternativa, que havia sido estimulada pelo MIR: o fechamento do congresso e sua substituição pela assembleia popular (uma espécie de conselho popular de democracia direta).

Por outro lado, o governo começa a frear os organismos populares também por sua política de alianças. Ao menos no último ano, Allende estava convencido de que longe de seguir o ataque aos interesses das empresas privadas, deveria-se parar as ocupações, mostrar ponderação, para ganhar o apoio do Partido Democrata Cristão, e assim, estabelecer um Pacto pela legalidade. Temia-se que a radicalização dos organismos de poder popular fosse usada para justificar e apressar o golpe militar. (DESTAQUE PARA A PARTE II DO FILME, A PARTIR DE 40 minutos e 15, EM QUE SE DÁ UM DIÁLOGO ENTRE TRABALHADORES DOS CORDÕES E UM REPRESENTANTE DA CUT – CENTRAL ÚNICA DOS TRABALHADORES. ASSISTAM!!!).  

Os trabalhadores chegaram a clamar por armas para enfrentar o fascismo. Mas, Allende optou pela via diplomática. A estratégia não funcionou. Os democratas cristãos não estavam interessados em se aliar com o governo. O golpe veio e o povo, disposto a lutar contra o fascismo, não tinha armas para se defender.

Dentre a esquerda que analisa hoje o golpe, alguns culpam a pressa dos trabalhadores e suas correntes políticas mais radicais, tais como o MIR e o PS, que acabaram menosprezando a força da reação e a provocando. Outros culpam a lentidão do governo, que ao invés de dar um golpe nos poderes econômicos e políticos da burguesia, confiando o poder na auto-organização dos trabalhadores, preferiu tratar o inimigo dentro das regras do jogo. 

De todo modo, para qualquer uma dessas análises, este é um grande filme, pois consegue, apesar de alguns limites, dar conta da complexidade das relações de adoração e tensão entre governo e poderes populares. 

O rock no diminutivo



É claro que não é possível ouvir música como Nietzsche, por exemplo, a escutava. Mas, algumas de suas críticas a Wagner são, para mim, alguém que vive no tempo do rock mais bonitinho e comportado, grandes elogios.  Ele dizia:

"Aí está um músico que supera qualquer outro na arte de extrair tonalidades do mundo das almas sofredoras, oprimidas, torturadas e que consegue dar voz à muda desolação. Ninguém o iguala no matizado de fim de outono, na felicidade indizivelmente comovedora do último, do derradeiro, do mais breve prazer; conhece a tonalidade que convém a essas meias-noites secretas e inquietantes da alma, em que causa e efeito parecem escapar a toda e qualquer lei, em que a cada momento algo pode nascer 'do nada'. (...) Conhece como a alma se arrasta, fatigada, quando já não consegue mais correr nem voar, nem mesmo caminhar; tem o olhar sombrio da dor escondida, da compreensão que não consola, dos adeuses sem confissão; sim, Orfeu de todas as misérias secretas, não possui rival e, graças a ele que, como primeiro, a arte acrescentou a si mesmo aquilo que até então parecia inexprimível e mesmo indigno da arte - por exemplo, as cínicas revoltas de que somente o auge do sofrimento é capaz, bem como muitos indecifráveis e microscópicos momentos da alma, por assim dizer, as escamas de sua natureza anfíbia. (...). Wagner foi alguém que sofreu profundamente - essa é sua superioridade sobre os outros músicos. __ Admiro Wagner sempre que se debruça sobre si própria em música. (...)

Isso não significa que eu considere essa música como sadia e, de modo particular, precisamente quando se fala de Wagner. Minhas objeções contra a música de Wagner são objeções fisiológicas: por que tentar disfarçá-las ainda sob fórmulas estéticas? A estética não passa, na realidade, de uma fisiologia aplicada. Para mim o "fato", meu "pequeno fato verdadeiro", é que não respiro mais facilmente a partir do momento em que essa música começa a agir sobre mim; meu pé logo se irrita e se revolta contra ela: porque meu pé tem necessidade de cadência, de dança, de marcha - até o jovem imperador da Alemanha não poderia marchar ao passo e ao som da 'marcha do imperador' de Wagner - porque exige da música acima de tudo os arrebatamentos para avançar corretamente, para caminhar corretamente, para dançar bem. Mas será que meu estômago não vai protestar também? E meu coração? E minha circulação sanguínea? Minhas entranhas não vão estar aflitas? Será que não vou enrouquecer sem querer? (...) Isso me leva a colocar a seguinte questão: o que meu corpo inteiro quer, pois, da música? Pois a alma não existe... Quer, acredito, seu alívio: como se todas as funções animais tivessem necessidade de ser estimuladas por ritmos leves, ousados, cheios de animação, seguros de si; como se o bronze e o chumbo da vida devessem esquecer seu peso graças ao ouro das ternas e untuosas melodias. Minha melancolia aspira ao repouso nos recônditos e nos abismos da perfeição: é por isso que tenho necessidade da música. Mas Wagner causa doença".

Acho que Nietzsche é completamente original e necessário ao pensar a estética a partir da fisiologia. Sim, precisamos nos perguntar o que as músicas de hoje, as músicas que ouvimos ou descartamos, produzem em nosso corpo.

O rock pós Stroke e Los Hermanos é tão bonitinho, tão comportado, tão superficial, que basta vermos a reação dos corpos dos fãs durante os shows, para termos uma percepção exata do tipo de vida que este rock nos traz. Os sorrisinhos no rosto, a cara de apaixonadinhos felizinhos. É um rock no diminutivo. Um rockinho. Não precisa dizer que é um rock para jovens bem de vida. Não protestam os estômagos. Porque o fariam? Os pratos estiveram sempre cheios. Onde está a garra, a raíz, a força,  a revolta e resistência que essa juventude demonstrou nas ruas?

sexta-feira, 6 de março de 2015

Quem nasceu depois de 89



O velho ranzinza que vive dentro de mim é uma figura extremamente radical e injusta. Ele anda, entre uma baforada e outra de cigarro, me dizendo assim: 

"O que há de pior nessa geração que nasceu depois de 89, além dessa desconfiança natural que seus membros possuem das grandes teorias, é esse desejo orwelliano de destruição da língua e de criação de um novo dicionário com o menor número de palavras possível. É uma coisa meio novilingua, sabe?

Sou de uma época em que as pessoas diziam: “Ela tentou evitar o sorriso, mas em um movimento involuntário dos nervos do rosto, os lábios se abriram e derrubaram, vitoriosos, os deuses da ironia e da beleza aos seus pés”.

Agora não. Essa geração quando quer sorrir solta simplesmente um rs (que nós, com mais de 30, tendemos a ler como se lê onomatopeia, um rrrrs, com R de gargarejo bem típico dos alemães). É assustador! É uma espécie de Adolf Hitler satirizado no Bastardos Inglórios (filme bem típico dessa geração).

Pensa! Você está no meio de uma conversa interessante e meiga e, de repente, ao invés da pessoa sorrir involuntariamente, ela solta esse rrrrs meio que escarrando em nossa cara. É constrangedor!!!

E não preciso dizer que isso é extremamente conservador. Trata-se da suspensão do elemento estético e da vitória, estrondosa, do pragmatismo estadunidense na linguagem. Tudo se torna rápido, econômico, lucrativo, ninguém se dá ao trabalho de se deter sobre algo de modo arrebatador.

Mas, não devemos culpá-los. Eles nasceram depois de 89. Como esperar que não carreguem em si mesmos um muro se desmoronando?

Por mais que hajam alguns dentre eles que sejam simpáticos ao comunismo, estão todos, mesmo na militância que fazem, enredados em uma linguagem de fim da história”.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

CHE GUEVARA PSICOPATA? MENOS, BEM MENOS: sobre verdade histórica e os fuzilamentos na Revolução Cubana




O que os discursos que querem desmiticar os heróis históricos muitas vezes tem em comum com os discursos que eles dizem combater é que partem de uma mesma estrutura: a personalização.

Vivemos uma campanha grandiosa no Brasil e no mundo contra Che Guevara. A intenção é dizer que ele era um psicopata, uma máquina fria de matar.

Para isso, tanto citam trechos de suas frases completamente fora de contexto, quanto apresentam relatos de execuções que ele cumpriu pessoalmente na Sierra Maestra, durante a luta revolucionária, ou de fuzilamentos que ele comandou em La Cabaña, logo após a vitória da Revolução.

A questão é que a verdade histórica depende pelo menos de três elementos.

1) Pertinência empírica. Trata-se aqui de conteúdos factuais que realmente podem ser inferidos das fontes históricas. Por exemplo, se alguém disser que Che executou centenas de homens na Sierra Maestra, diremos que essa afirmação não possui pertinência empírica. O mesmo poderíamos dizer de uma afirmação que sustentasse que Che nunca executou nenhuma pessoa.

Sim, no diário de Che, que foi censurado em Cuba, aparecem dois relatos de execuções que ele teria realizado em Sierra Maestra. Depois da revolução, ele comandou a maior parte dos fuzilamentos em La Cabaña. Como interpretar estas execuções e fuzilamentos?

2) Pertinência Interpretativa. Trata-se aqui do modo como nós interpretamos esses conteúdos factuais. De que forma nós criamos sobre ele, a partir de ideias, conceitos, noções, significado para aquele conteúdo? Aqui as divergências entre os historadores são bem mais amplas do que na questão da pertinência empírica. Se eu disser por exemplo que Che não matou ninguém, ou que Che matou alguém, a simples apresentação de alguns documentos poderá facilmente resolver a divergência, mostrando que um lado está mais correto do que o outro. Porém, um mesmo conjunto de informações factuais podem ser interpretados de forma bastante distinta. Nesse caso, a história é uma disciplina intrinsecamente multiperspectivada. Ela pode aceitar diferentes interpretações sobre o mesmo fenômeno histórico.

Porém, o fato de aceitar várias interpretações não faz com que necessariamente toda e qualquer interpretação histórica seja igualmente válida. Existem interpretações que são facilmente refutadas, por partirem de conceitos bastante ingênuos ou frágeis.

Dentre as interpretações de mais fácil refutação estão estas que ignoram os contextos históricos do agir humano e tendem a personalizar as condutas.

Sim, Che participou de execuções e de fuzilamentos. Mas, sem entendermos o ambiente em que estas execuções e estes fuzilamentos ocorreram, obviamente, tenderemos a personalizar sua atitude, como se ele matasse por pura vontade de matar. Como se suas atitudes fossem um traço de desvio patológico.

Trata-se para qualquer historiador de uma preguiça de exercer a tarefa hermenêutica. Uma ausência de esforço de compreensão dos motivos e das intenções da ação dos atores históricos. É neste sentido que a tentativa de transformar Che em um psicopata é sempre uma história de péssima qualidade.

3) Coerência Normativa. Por último, pode-se discordar de uma história por uma questão normativa. Isso é, pelo tipo de orientação que essa história produz para o presente. Por exemplo, eu posso condenar em qualquer circunstância o fuzilamento e a execução de uma pessoa, ainda que eu consiga compreender os motivos que impulsionaram a sua ação naquele contexto. Nesse sentido, eu posso discordar daquelas histórias que tendem a elogiar a execução e o fuzilamento, simplesmente por não concordar moralmente com execuções e fuzilamentos. Da mesma forma, eu posso discordar das histórias que visam deslegitimar toda e qualquer guerrilha, justamente porque eu acredito que uma guerrilha não é necessariamente algo ruim, mas necessário em determinados contextos. Em resumo, discordamos da história pelos valores que carregamos.

A posição normativa da história geralmente já está dada pelas ideias com as quais ela interpreta o conteúdo factual. Mas, não necessariamente. Por exemplo, eu posso me abrir para a compreensão das atitudes de Che e ainda assim condenar sua ação. Mas, eu não posso é em função de uma posição normativa fechada, me recusar a fazer o esforço hermenêutico. Em suma, minha tentativa de contextualizar as execuções e fuzilamentos não exige de mim uma concordância com as execuções e com os fuzilamentos. Implica apenas que não podemos atribuí-los a uma patologia pessoal do líder guerrilheiro.

Para contextualizar as execuções e os fuzilamentos em Cuba, eu trouxe alguns documentos bem interessantes que são comentados a seguir.

Sobre as execuções na Guerrilha.

Em Cuba, se travava uma guerra de guerrilhas. Nenhum idiota ignora que qualquer um que se levante em armas contra uma tirania precisa estar disposto a matar. Falar que Che era psicopata porque ele matou seria então dizer que todo guerrilheiro ou mesmo todo e qualquer soldado que participara de um Guerra, em todos os momentos históricos, não passam de psicopatas. Afinal, quando se levanta em armas contra um regime está, a partir daí, em guerra.

Como disse o principal biógrafo de Che em uma entrevista, John Lee Anderson, ao falar sobre a censura de um dos trechos em que Che falava sobre a execução de Eutimio Guerra (o primeiro homem a ser executado pela guerrilha cubana):

“Não sei o que temem. Foi um crime? Não foi um crime. Isso é o que faz em uma guerra. Não é bonito, ninguém gosta, mas acontece. A partir desse momento, se endurece a revolução e aí se começa a usar a lógica clássica, severa das guerrilhas, de Cuba aos vietcongs. É assim.”

Havia realmente divergências entre os guerrilheiros cubanos sobre fuzilar ou não um traidor. Mas, prevaleceu no exército rebelde a ideia de que era necessário fuzilá-los. Pode-se, obviamente criticar esta posição, mas jamais atribuí-la à suposta personalidade psicótica de Che.

No geral, o Exército Rebelde em Cuba tinha uma atitude que se pautava no humanismo, muito mais do que na punição. Penso que o relato de Carlos Franqui (ex-guerrilheiro que teve enfrentamentos com o Che e que também foi exilado de Cuba depois da vitória revolucionária), que coloco logo abaixo, é bastante elucidativo desta conduta, além de demonstrar a existência de alguns abusos durante a atuação guerrilheira.

"Uma das coisas que me surpreendeu quando cheguei à Sierra foi o lado humano da guerra. O exército rebelde parecia quixotesco, com Fidel representando o papel de nobre espanhol. Ordenou que déssemos tratamento médico ao inimigo ferido como se fosse o próprio camarada de armas. Não iríamos matar ninguém. Não iríamos matar, torturar ou ofender prisioneiros de forma alguma. Iríamos explicar o que lhes estávamos fazendo e por quê, no sentido de educá-los para nossa causa. Respeitaríamos os camponeses, suas tradições, suas mulheres e seus produtos - teríamos que pagar por tudo que usássemos. Havia igualitarismo também entre comandantes e soldados. Não havia privilégios de postos. Éramos uma família e trabalhávamos juntos por respeito, em vez de simples obediência. Havia poucos comandantes, portanto não constituíam uma classe.

Na clandestinidade urbana lutamos para evitar que nossos homens se tornassem assassinos comuns porque sabíamos o quanto era perigoso dar a qualquer um licença para matar. Acreditávamos que a vida era um genuíno valor revolucionário, e que não se transforma o mundo simplesmente matando pessoas.

Descobrimos que mesmo matar em legítima defesa desumaniza o indivíduo, por isso exigíamos que todos os grupos inocentes fossem respeitados. Rejeitávamos o terrorismo porque Batista representava o terrorismo. Usávamos um mínimo de violência contra a violência absoluta do regime, sabotando suas áreas estratégicas (estações de energia, gasodutos, linhas telefônicas, transportes, fábricas e produções de açúcar).

Planejávamos cuidadosamente cada ato de sabotagem para que nenhum inocente fosse morto. Chegamos ao ponto de avisar os passantes.

Um bom exemplo foi o que fizemos na rua Suárez, 222, em Havana. Havíamos cavado um túnel da casa até um grande centro de medição de gás e eletricidade. Nós o explodimos, paralisando a capital por três dias. Nenhum ferido. Efeito político tremendo. Foi assim que ganhamos a simpatia do povo.

(...)

Descobrir em guerra aberta a mesma atitude não-violenta que havíamos mostrado com relação às cidades foi realmente um choque. A batalha de Jigue foi uma obra-prima neste sentido. Fizemos 250 prisioneiros, oficiais e praças, após uma batalha acirrada que nos custou a vida de um corajoso guerrilheiro, Cuevas, e as de muitos outros. Assim, cuidamos dos feridos, alimentamos todos e os libertamos. Até deixamos os oficiais com suas armas de mão.  Três de nós, Faustino Pérez, Horácio Rodriguez e eu - desarmados - levamos os prisioneiros a um campo inimigo e os deixamos com a Cruz Vermelha Internacional. Enquanto estivemos lá, assinando uns formulários, em Vegas de Jibacoa, na Sierra Maestra, quem nos aparece? Che Guevara montado numa mula! Conversou cordialmente com os oficiais capturados, e depois teve que dar seu autógrafo aos nossos prisioneiros. Depois de eventos desse tipo, os dias de Batista estavam contados, pois as tropas puderam ver que barbudos não eram seus inimigos, eram homens lutando pela liberdade. Esse humanitarismo não era de fachada; era verdadeiro.

Mas será que o era para Fidel? Era humanitarismo, ou apenas uma tática para vencer a guerra? (...)
Achávamos que as coisas começariam a mudar, mas , tão logo a vitória foi nossa, começamos a ver execuções a torto e a direito. O humanismo foi erradicado pelo terror vermelho, e o Fidel humano tornou-se o Fidel implacável. Por que a crueldade, os maus-tratos, a onipotência da Segurança? Por que eram negados privilégios de visita aos prisioneiros? Por que foram suspensos os habeas corpus - o que nem mesmo Batista jamais se atrevera a fazer? As pessoas se transformam quando alcançam o poder?
Qual é a diferença entre um homem quando faz parte de um grupo de oposição e quando tem o poder absoluto?

(...)

A única pergunta era se estávamos vendo o verdadeiro Fidel ou se ele tinha realmente sofrido uma metamorfose. Che Guevara nunca esqueceu o primeiro homem que fuzilou usando um rifle de mira telscópica, precisamente porque Che nunca esqueceu que o inimigo é um homem, um ser humano. Fidel era diferente; ele tinha que matar, e o fazia friamente, sem emoções. Descobri, entre os papéis velhos que carreguei durante a guerra, um documento que fornece um precedente para a crueldade pós-vitória de Fidel. Este era o uso de execuções simbólicas, em que um homem seria avisado da sua execução, posto contra a parede, mas não seria fuzilado. Esses homens ficam doentes devido à tortura mental. O falso executor torna-se um perigo para a sociedade. Efetuamos todos os tipos de execuções - reais, morais e simbólicas".  (FRANQUI, p. 160-162).

Sobre os fuzilamentos após a vitória da Revolução em 1959. 

No período após a tomada do poder, veremos que os fuzilamentos que esta má memória quer atribuir à personalidade psicótica de Che, eram na verdade exigidos por grande parte da população cubana. Não se tratava em hipótese alguma de uma atitude comunista de Che ou de qualquer outro. Tratava-se de uma exigência popular. Mesmo setores liberais cubanos, como o próprio diretor da revista Bohemia, Miguel Angel Quevedo, teve que depois fazer a sua mea culpa. Em sua carta de suicídio em 1969, afirmou:

"Culpables fuimos todos. Los periodistas que llenaban mi mesa de artículos demoledores, arremetiendo contra todos los gobernantes. Buscadores de aplausos que, por satisfacer el morbo infecundo y brutal de la multitud, por sentirse halagados por la aprobación de la plebe, vestían el odioso uniforme que no se quitaban nunca.
No importa quien fuera el presidente. Ni las cosas buenas que estuviese realizando a favor de Cuba. Había que atacarlos, y había que destruirlos. El mismo pueblo que los elegía, pedía a gritos sus cabezas en la plaza pública". (veja a carta completa aqui: http://www.contactomagazine.com/quevedo100.htm).

O escritor Guillermo Cabrera Infante também apoiou profundamente os fuzilamentos, e mesmo depois de ser exilado de cuba, disse que não se arrependia de nada que havia feito durante a época de seu apoio à revolução. Em um artigo intitulado "Somos actores de una historia increíble", ele dizia:

"¿Es que la relevancia de los fusilados es tal que rebasa las fronteras y el océano? ¿Es que políticos perdidosos caen bajo las balas del pelotón de fusilamiento? Nada de eso. Es un simple caso de justicia, de la más elemental e inmediata. Los fusilados son connotados criminales; sus crímenes han sido cantados por ellos mismos; un pueblo de siempre sentimental no ha movido un dedo para impedir que sigan los ajusticiamientos; hasta los familiares de los ajusticiados saben que se obra con espíritu de honradez". (http://www.diariodecuba.com/cultura/1325672241_1369.html).

Os recortes que apresento abaixo são da revista Bohemia de 11 de Janeiro de 1959, a revista mais popular de Cuba na época.



Nessa matéria acima, a revista deixa claro que o "ostracismo político e o desterro são demasiado benévolos" para os crápulas batistianos.

Ainda na mesma edição, a revista comemora o fuzilamento de Garcia Olayon.



A matéria começa dizendo: "Aqui vai o prisioneiro dos rebeldes, o assassino Comandante Alejandro Garcia Olayon". E, ao final, mostra a foto do comandante executado, dizendo: "A justiça revolucionária havia executado a outro sádico criminoso". Chamo atenção para o uso dos adjetivos: "assassino", "sádico".

A revista também está repleta de imagens de rebeldes assassinados pelo governo de Batista, que acessam a sensibilidade dos leitores para dizerem: "Assassinos. É preciso que paguem por isso!"


O relato de Carlos Franqui me parece que capta bem o quanto a reivindicação pelos fusilamentos era popular em Cuba. E ao mesmo tempo, Franqui faz uma crítica bastante interessante à prática dos fusilamentos. Não deixem de conferir.

"Os crimes e as torturas cometidos pelo regime de Batista foram inumeráveis. Mas incluíam a experiência da revolução frustrada de 1930, que traumatizou a nação. Os criminosos do regime de Machado nunca foram levados a julgamento: eles ainda matavam pessoas, com Batista de 1934-1939, e novamente com Batista, de 1952-1958. O fato de a justiça nunca ter sido feita acarretou um desejo de vingança, e isso, por sua vez, criou turmas de briga cujos membros haviam se tornado gangsters. Então esses bandos declararam guerra uns aos outros. Aconteceram centenas de tentativas de assassinato, uma das razões pelas quais o Exército apoiou o golpe militar de Batista.

A cada dia alguém descobria um novo cemitério clandestino. O sangue dos que foram assassinados parecia correr novamente em cada canto de Cuba. Mas não havia histeria coletiva: em vez disso, havia um desejo coletivo de justiça. O que aconteceu poderia ser comparado com os julgamentos de crimes de guerra nazistas após a Segunda Guerra Mundial. Não estou dizendo que Batista fosse outro Hitler, mas asseguraria que seus crimes e torturas, tenham sido eles aos milhares ou aos milhões, criariam o mesmo sentimento de repulsa, a mesma necessidade de justiça, em qualquer época ou lugar na terra. O espírito nacional cubano, normalmente calmo, assim o permaneceu em face de todo esse derramamento de sangue redescoberto, e exigiu justiça.

Fidel convocou o povo ao Palácio Nacional. Lá ele perguntou à multidão - inaugurando um estilo que posteriormente chamaria de democracia direta - se ela achava que os criminosos de guerra deveriam ser fuzilados. "Ponham eles contra a parede!", alguns gritavam. Então, um "Sim!" colossal ressoou em resposta à pergunta de Fidel. Uma pesquisa nacional, feita confidencialmente, indicou que 93% dos entrevistados concordavam com as sentenças e as execuções. Eu também concordava. Vivera a guerra clandestina, na qual o único valor era a vida, e uma guerra humanista nas montanhas. Eu vivera os assassinatos e as torturas dos meus camaradas e amigos. Eu tinha sido torturado. Não sentia ódio e não queria vingança. Simplesmente achava que menos vidas seriam perdidas, no fim das contas, se pudéssemos apenas executar os assassinos e terminar com isso. Todos nós concordávamos. Hoje, discordo e assumo total responsabilidade pelo que aconteceu então. Não por compaixão, não porque ache que os esquadrões terroristas de Batista, ou seja lá quem for, estejam inocentes ou mereçam viver. O problema não é quem recebe o disparo, é quem o faz. Quando você executa alguém a sangue frio, está aprendendo a matar. É assim que seres humanos se tornam máquinas de matar, e essas máquinas são impossíveis de deter. Então, da nossa decisão de poupar sangue matando criminosos, surgiu um novo poder repressor, que seria implacável". (FRANQUI, p. 35-36).

domingo, 8 de fevereiro de 2015

MEMÓRIAS BORRADAS DA REVOLUÇÃO CUBANA: a posição libertária de Carlos Franqui.












As duas versões da foto acima estão na capa do livro "Retrato de Família com Fidel", um livro do ex-guerrilheiro cubano Carlos Franqui, publicado em 1981.  

Na primeira foto (tirada no fim do governo Batista ou logo após a sua queda e publicada pela primeira vez no Jornal Revolución, em 1962), aparece, no segundo plano, entre Fidel e outra pessoa não identificada, o guerrilheiro Carlos Franqui.

Na segunda versão da foto, publicada na folha oficial do Granma em 1973, Carlos Franqui foi simplesmente apagado. 

Como disse, no prefácio do livro, o grandioso escritor cubano Guillermo Cabrera Infante:

"Na segunda edição, revisada, a foto se torna um documento singular: Fidel ainda está, como antes, em primeiro plano, com um anônimo Sexta-Feira a lhe estender um microfone. Mas entre os dois homens existe agora um estranho vácuo, um espaço em branco que é, de fato, o buraco negro da era totalitária: o eterno labor de escrever e reescrever no tecido da história (...). Num golpe cruel, ele foi obliterado da história da Cuba revolucionária, da revolução, do próprio futuro. Banido, poder-se-ia dizer, da posteridade marxista. Aí está a censura. Tais demonstrações da prestidigitação não só possíveis como necessárias na historiografia atual de Cuba. (...)
A mesma técnica que a revista Playboy usava em pêlos púbicos excessivamente públicos e umbigos demasiado delicados, um aerógrafo com tinta invisível, foi usada aqui". (p. 05 e 06).

Eu resolvi começar este texto com esta técnica mágica de apagar o passado, justamente porque é de uma versão apagada do passado revolucionário cubano que gostaria de tratar aqui. 

Se há algo que precisa ser superado a respeito da revolução cubana é o dualismo com que o debate sobre ela é, hegemonicamente, feito no Brasil.  

Se você tem posicionamentos de esquerda, então você é favorável à revolução cubana. Se faz críticas a ela, então você é de direita. Esse dualismo com que vemos o passado também tem muito o que ver com o dualismo presente no debate público brasileiro. Em questões políticas, por exemplo, se você é de esquerda, então defende o governo do PT. Se faz críticas a ele, então é de direita e está do lado do PSDB e companhia.  E com esta dicotomia jogamos para a lata de lixo todas as outras possibilidades e forças que propõem uma alternativa muito além destas duas forças políticas.

As duas posições que marcam a crítica ou a defesa da revolução cubana tem origens na própria cisão inciada com a vitória revolucionária. Por um lado, prevaleceu na América Latina a memória oficial do regime cubano. Por outro lado, essa memória veio atacada pelas memórias dos bastistianos exilados em Miami desde 1959, pessoas altamente contrárias, obviamente, à revolução, ao socialismo, ao antiimperialismo, etc. 

Todas as duas escondem outros pontos de vista, outras memórias. Elas escondem, por exemplo, aqueles pontos de vista dos revolucionários que estavam dentro da revolução, que lutaram por ela, mas que foram, com a constituição de um regime cada vez mais fechado, eliminados do processo (presos, exilados ou mesmo assassinados).

Enquanto lutavam contra Batista, as diferenças e tensões ideológicas foram deixadas em segundo plano em prol da luta contra o inimigo comum. Durante a luta, quase ninguém, nem mesmo os poucos comunistas do Movimento 26 de Julho, imaginavam que a Revolução tomaria um rumo que não fosse o rumo liberal. Che mesmo disse em uma carta de 14 de dezembro de 1957 a Daniel (René Ramos Latour), um membro do Movimento 26 de Julho: 

"Pertenço, devido à minha formação ideológica, àquele grupo que acredita que a solução para os problemas do mundo reside atrás da Cortina de Ferro, e entendo este movimento como um dos muitos provocados pelo desejo da burguesia de se libertar dos grilhões econômicos do imperialismo. Sempre pensarei em Fidel como um autêntico líder burguês de esquerda, embora sua figura seja glorificada pelas qualidades pessoais de brilhantismo extraordinário que o colocam bem distante de sua classe. Iniciei a luta naquele espírito: honradamente, sem esperança de ir além da libertação da nação, com a intenção de ir quando a situação pós-revolta voltasse para a direita (em direção ao que você e seus associados representam)." (FRANQUI p. 233).

O partido comunista cubano era contra a guerrilha e tinha chamado o Movimento 26 de Julho de "Putschista", aventureiro e de classe média.  

Dentro do Movimento 26 de Julho só havia efetivamente três figuras de peso que eram comunistas no sentido russo do termo: Che, Raúl Castro e Ramiro Valdés. A imensa maioria dos lutadores ou era formada por liberais ou por socialistas radicalmente anti-URSS, como veremos. 

Fidel, embora tenha facilitado o domínio dos comunistas sobre a revolução, era visto por todos os guerrilheiros como qualquer coisa, menos como comunista.

Porém, quando os rebeldes tomaram o poder e os bastitianos fugiram de Cuba, e era preciso saber o que fazer, começaram as divisões de modo mais aberto e radical. Nos primeiros meses da vitória em 1959, já era possível ver a existência de alguns grupos que disputavam o futuro cubano no interior do processo revolucionário.

Os grupos que apresentamos aqui eram formados, de uma forma ou de outra, por guerrilheiros ou militantes que lutaram contra a ditadura de Batista. Em primeiro lugar, havia um grupo que detinha o controle sobre o Exército Rebelde e que foi pouco a pouco assumindo as principais funções no novo governo (obviamente com a benção de Fidel). Tratava-se dos comandantes pró-União Soviética: Raúl Castro, Che e Ramiro Valdés, que desde a Sierra, mas principalmente depois da vitória, foram trazendo os membros do partido comunista cubano (partido bastante deslegitimado entre a população e entre os revolucionários cubanos) para os principais cargos do Exército Rebelde e do Estado. Aqui é preciso dizer que Che rompeu com este grupo e inclusive se tornou crítico ao modo como a URSS agia em Cuba. 

Um outro grupo, mais moderado, era formado por rebeldes de formação democrático-reformista não-socialista, tais como Manuel Ray, Eloy Gutiérrez Manoyo, Huber Matos, Raúl Chibás, que, como disse o guerrilheiro Carlos Franqui, "eram a favor de reformas democráticas, negociação com os Estados Unidos e propriedade privada". A maioria deles tinha sido comandante da luta urbana. 

E, por último, havia um grupo bastante forte em Cuba, que tinha grande influência na Central dos Trabalhadores (CTC) e tinha combatido duramente Batista pelo Movimento 26 de Julho. Os membros dele eram claramente anti-imperialistas e socialistas, mas foram contrários aos rumos totalitários e estatizadores da revolução. Como disse Franqui, esse grupo "era a favor de uma revolução radical de natureza antiimperialista, anticapitalista, socialista.". Ainda em suas palavras: "Rejeitamos o modelo russo e o deplorável Partido Comunista de Cuba, que era seu Cavalo de Tróia, e recusamos o militarismo de Estado policial de Raúl e Ramiro. A luta real não seria entre o capitalismo neocolonial e o socialismo, mas entre o socialismo russo e o cubano." 

As memórias e reflexões de Carlos Franqui, como membro deste último grupo, são bastante importantes justamente por apresentarem um ponto de vista revolucionário, socialista e antiimperialista. Ele critica não a revolução em si, mas o modo como a revolução foi perdida para a burocracia. É neste sentido que se torna impossível simplesmente acusar Franqui de agente da Cia, ou de lacaio do imperialismo. Segue abaixo alguns trechos do seu Diário de Família com Fidel: 

ESTATIZAÇÂO OU SOCIALIZAÇÂO? 
"A estatização da indústria açucareira foi um golpe mortal para a propriedade privada. Houve quem dissesse que estatizar não significava necessariamente socializar. Se estudarmos a Revolução Russa e a aplicação do seu modelo em outros países, vemos que a estatização nada faz além de criar e apoiar um gigantesco, improdutivo e repressor superestado burocrático, um partido que é o Estado, que é o pai, que é o dono. Seria possível outra forma de Estado? Seria nossa pequena ilha, dependente como era dos Estados Unidos, capaz de se tornar auto-suficiente e independente? O grupo soviético disse que não, que nossa única esperança era a União Soviética. Meu grupo disse que sim, que podíamos contar com o povo, que havia feito uma revolução nova, autônoma. Mas e quanto a Fidel? 

Havia chegado o momento da nação se libertar da sua velha prisão: o açúcar. Os conservadores cubanos sempre afirmaram que sem açúcar não existira Cuba, mas os revolucionários sempre afirmaram que com o açúcar não havia país, liberdade ou independência. O poder tende a ser conservadore, e novamente devemos notar a diferença entre o poder nesses moldes e a revolução, que era o povo. O problema era que Fidel era o poder. Havia uma escolha a fazer: o povo ou o açúcar? O povo é o capital principal da revolução ou é a indústria? Para os soviéticos e seus satélites, a industrialização é a resposta a qualquer problema, mas nós, cubanos, acreditávamos que a resposta residia no próprio povo. Nos perguntávamos se seria possível alimentar Cuba sem açúcar e sem os Estados Unidos. E se não fosse possível, as pessoas perguntariam: então por que uma revolução? Estávamos convencidos de que poderíamos sobreviver, de que poderíamos desafiar um bloqueio econômico e até mesmo suportar um bloqueio físico. 

Afinal de contas, Cuba é um país tropical, capaz de sustentar uma agricultura variada. Podíamos nos alimentar. Podíamos até sobreviver a um corte em nossos fornecimentos de energia, em parte porque o álcool que a cana-de-açúcar produz poderia ser substituído por petróleo. O açúcar teria de ser um produto intermediário. Teríamos que aumentar nossa produção de níquel - Cuba possui uma das maiores jazidas do mundo. Teríamos que empregar nossas reservas de energia para desenvolver essa indústria. Segundo, teríamos que reorientar nossa agricultura de modo a ficarmos auto-suficientes com relação à comida. Terceiro, teríamos que incrementar nosso turismo, indústria para a qual Cuba é ideal. Poderíamos então nos relacionar com o mundo inteiro e não apenas com uma pequena fração - os Estados Unidos ou a União Soviética. Martí pregava uma política de união com os países de língua espanhola: poderíamos ir mais adiante e ter relações com a África, terra de origem de muitos de nós, com a Ásia e com o Terceiro Mundo. Poderíamos ter relações com o mundo socialista. 

Certo, certo, as pessoas diziam, a resistência econômica é possível, mas e quanto à resistência militar? Sem a União Soviética, Cuba não existiria. Que é um replay de: sem os Estados Unidos, Cuba não existiria. As pessoas se esquecem de que Cuba suportou sozinha o conflito com os Estados Unidos e sua própria classe capitalista. Éramos um povo unido, pronto para morrer, e com a opinião mundial do nosso lado. Sei que, em pouco tempo, as pessoas dirão que o próprio Blas Roca estava no Granma, que Laika, a cosmonauta canina, na verdade pousou na Sierra e que os generais russos a transformaram em cachorro-quente na baía dos Porcos, e que o primeiro e único Mikoyan nos salvou na crise dos misseis. Mas a questão é que tínhamos a possibilidade de estabelecer nosso próprio socialismo cubano, porque a classe operária, os camponeses, a juventude da nação e uma boa parte da classe média estavam conosco. O país estava agindo por conta própria porque havia recuperado sua riqueza, sua dignidade, e estava livre e independente. 

Este era o momento para se confiar no povo e criar novos modos de viver. Socializar nossas grandes indústrias teria sido fácil. Os operários da indústria açucareira já eram politizados, e teria sido relativamente simples mostrar-lhes que podiam trabalhar tão duramente para seus próprios interesses quanto haviam trabalhado para os patrões. O mesmo se aplicava à indústria pecuária, que já estava, na verdade, alimentando a nação com carne e leite a preços baixos. Outras indústrias, como a de tabaco, também entrariam na linha. Poderíamos estimular a indústria pesqueira e parar de importar óleo de cozinha - um absurdo, num país produtor de amendoim, milho e girassóis. Poderíamos recorrer ao povo, à sua longa experência com a terra. E a própria reforma da terra não seria um problema, pois apenas uma pequena minoria dos camponeses possuía propriedades, e isto porque a revolução deu terra à maioria deles. Tínhamos um sistema de transporte de som, portanto distribuição não era problema. Até as classes profissionais - incluindo dez mil médicos - apoiaram a revolução. A burguesia contra-revolucionária já estava nos Estados Unidos: boa viagem para eles. Não havia uma verdadeira oposição à revolução em toda a Cuba (No exterior, naturalmente, existia oposição, mas era incapaz de derrubar a revolução sem a ajuda americana). 

Só precisávamos dar poder ao povo - não a um ditador militar. Não necessitávamos do modelo russo, ou de qualquer influência soviética. Nossa tese, como o comandante Daniel a colocou na polêmica com Che Guevara era: "Queremos nos libertar do imperialismo ianque, mas não queremos correr de encontro ao imperialismo russo, ao nos afastarmos dos Estados Unidos." Também assim pensávamos, e a história provou que tínhamos razão, que a União Soviética era incapaz de substituir os Estados Unidos em suas relações econômicas com Cuba. Por um lado, era muito distante. Por outro, possuía uma estrutura industrial totalmente diferente. As peças de reposição russa eram inúteis para as máquinas feitas nos Estados Unidos. A Rússia não fabricava as coisas de que precisávamos. E sua economia, gerida pelo Estado, em vez de socialista, já demonstrara na Europa Oriental e na China como eram ineficazes os russos. Além do mais, grandes potências gostam de controlar pequenas. 

Em conversa com Fidel, expressamos nossas preocupações com a União Soviética e os modelos que ela oferecia, em particular sua tendência ao monopólio estatal em vez do socialismo verdadeiro. Algumas das decisões de Fidel nos incomodaram: fazendas estatais em vez de cooperativas auto-reguladoras. Uma tendência para  o gigantismo: onde havia exisitido uma enorme plantação, Fidel juntava dez e fazia uma superplantação. Queríamos agricultura em pequena escala, portanto não iríamos substituir o antigo chefe por um novo administrador, o velho proprietário por um novo proprietário estatal. Mas Fidel possuía uma desconfiança inata do povo; preferia militarização à organização. Ele também achava que, em tempo de paz e na economia, valiam as mesmas regras da guerra e das lutas de guerrilha - que um grupo de líderes poderia mudar tudo. Simplesmente não era assim. 

(...) 
(p. 85 a 88)
(...)

Com a estatização, tudo passou para o Estado - ou talvez o Estado estivesse enxertado no Partido. A nova união era Partido-Estado. Com a estatização, tudo passou para o Estado a fim de formar um Estado total. Agora tínhamos um Estado-Partido proprietária, que possuía tudo. Onde antes existiam milhares de propriedades particulares, grandes e pequenas, agora só existita uma, que pertencia ao Estado. Onde antes havia anarquia na produção, que levara a desigualdade e injustiça, agora havia tirania na produção, que paralisava a economia e a própria vida, congelando as diferenças existentes em suas posições específicas. A lei leninista de desenvolvimento diferente foi suprimida de cima, não de baixo. O sistema herdou não apenas diferenças nas classes mas diferenças naturais também - terras ricas e pobres, áreas desenvolvidas e subdesenvolvidas. 

Efetivamente, a revolução mudou alguma coisa? Sim, tudo nos mais altos escalões de Cuba mudou: o Partido-Estado era a nova classe dominante. Mas nada mudou mais para baixo. Aqueles de nós - quase dois milhões - que sofreram ao longo desse processo sabem que o monstro não é o socialismo. Essa palavra simplesmente não tem mais significado. Cada lado tem suas palavras-chave. Pinochet e Videla falavam sempre sobre o "mundo livre", enquanto Kim II Sung, Deng Xiao-Ping, Husak, Pan Van-Don e Brejnev falam de "proletariado", "democracia popular", "comunismo", "internacionalismo", e "território livre". 

Ninguém mais acredita nessas palavras porque a realidade do cotidiano lhes mostra a mentira. O mundo socialista não é socialista; é um mundo onde as pessoas são forçadas a trabalhar e a suportar racionamento e escassez permanentes, onde não têm direitos nem liberdades. Se são alfabetizadas - prerrogativa essencial para o muro da ignorância ser destruído de uma vez por todas - são privados da liberdade de ler o que gostam. O aumento da alfabetização é mais que contrabalançado pelo crescimento da nova elite. Não há igualdade na educação, porque a nova elite dá atenção especial aos filhos dos membros do Partido e oficiais do Estado. O mesmo se aplica ao trabalho. Não há desemprego, pois as pessoas trabalham em regime forçado, em campos de reeducação e no serviço militar. Os salários não são iguais e são insuficientes. Isto também vale para as residências, tratamento médico, transporte e comida. 

Os que estão no topo desfrutam de privilégios. Então não existe mais a velha burguesia, e daí? Existem burocratas que administram, controlam e estão ricos. No topo, tudo é diferente, enquanto que embaixo é a mesma coisa. Em Cuba, chamamos este sistema de sociolismo. (Trocadilho com as palavras socio - parceiro, truta - e socialismo). 

(FRANQUI, p. 169-170). 

QUANDO OS PORCOS SE TORNARAM HOMENS. 

Se referindo a 1959: 
"Alguns rebeldes começaram a 'requisitar' carros que pertenceram aos partidários de Batista, a tomar a casa dos ricos. 'Eis aí uma grande ideia', disse Raúl Castro, 'os barbudos vivendo nas mansões dos ricos.' Ótimo, eu disse, mas perigoso, porque os homens pensam de acordo com a maneira como vivvem. E não estava errado. A maioria de nós concordou. Faustino Pérez, o obstinado ministro da Recuperação da Propriedade, cujo ministério se encarregara do problema do confisco de casas, proibiu o confisco pessoal ou sem autorização. A maioria de nós, na verdade, tinha voltado a viver nos mesmos apartamentos antes da revolução. Também estipulamos nossos próprios salários: o de Che era o mais austero, 250 pesos por mês. Um ministro ganhava 750 e alguns outros 1000." (FRANQUI, P. 38). 

Se referindo a 1961: 
"Naquela época, a Segurança estava mudando comandantes, ministros, e qualquer pessoa de importância para novas casas. Alguns tentaram continuar onde estavam - Che, Faustino, Celia, Haydée, Chomón, Orlando Blanco e eu. As casas novas eram as que haviam sido abandonadas pela classe média de Havana. Isso reabriu uma polêmica que permanecia em fogo brando desde 1959. Após a guerra, muitos retornaram direto aos seus antigos apartamentos, enquanto outros queriam 'profanar' (como eles diziam) as casas dos ricos. Foram eles os 'profanados'. Essas casas foram equipadas com guardas, 24 horas por dia, devido à ameaça contra-revolucionária, mas também era uma boa maneira de manter um olho na pessoa à moda soviética. Celia, Haydée e eu conseguíramos evitar esta situação de casas novas simplesmente por sermos civis. Todo o pessoal militar, entretanto, teve de se mudar. 

(...)

Como não obedeci à ordem para me mudar, Fidel apareceu, disse que eu corria perigo, e que simplesmente teria de cumprir ordens. No dia seguinte, o pessoal da Reforma Urbana me entregou as chaves da minha nova casa. Eu seria um hipócrita se dissesse que não gostei do que encontrei - piscina, livros, boa mobília, jardim, ar-condicionado - mas ao mesmo tempo me senti culpado. 
Fidel, pessoalmente, nunca teve esses problemas, pois estava acostumado a viver em casas como aquela. Além do que, ele realmente tinha um problema de segurança. Mas ele mdou suas casas, personalizou-as, trazendo vacas e apetrechos de fazenda. O que de fato acontecia era que estávamos criando uma nova elite, apesar de toda a retórica sobre a necessidade de nos protegermos, a necessidade que as pessoas dos escalões mais altos tinha de conseguir relaxar. Essa nova elite iria ser perigosa um dia". 
(p. 123). 

SOBRE A DEFESA DAS MILÍCIAS
"No Primeiro de Maio de 1959, a milícia desfilou por todas as ruas de Cuba. Um novo instrumento da revolução fazia sua estréia: as camisas e calças azuis da milícia, cujo uniforme - aquele dos trabalhadores comuns - tornou-se o símbolo dos novos revolucionários. Eles eram voluntários, eram trabalhadores e eram algo entre soldados e civis. Eles representavam espontaneidade e organização. O miliciano era o terceiro herói de 1959. Era o herói coletivo, o verdadeiro "Partido da Revolução". Homens, mulheres, jovens, negros, mulatos, operários, camponeses, estudantes, profissionais liberais, intelectuais, a classe média, os pobres. A milícia foi a nova revolução que deu uma identidade a todos, sem preconceito. Só pedia voluntários; fornecia treinamento militar, providenciava proteção para fábricas e contemplou a todos com a consciência política e humana. Era democracia armada, e chegou a ter um milhão de membros. 
Quem a criou? Não se sabia, mas foram os sindicatos e o Movimento 26 de Julho que forneceram o estímulo. Porém, foi logo encampada por aqueles que estavam justamente no lugar certo para fazê-lo: o Exército, com Raúl e os comunistas por trás. Mas ocorreram conflitos desde o começo, porque a milícia representava liberdade igualitária, e o Exército exigia obediência à autoridade superior. Um povo armado não é um exército. E esse espírito populista simplesmente mostrou o que podia fazer nas campanhas da cana-de-açúcar, na campanha de alfabetização e na luta que aconteceu nas montanhas de Escambray, contra os rebeldes anticastristas. A milícia nunca teve o caráter repressivo da Polícia de Segurança ou dos Comitês de Defesa, nem, é lógico, jamais gozou da confiança política e técnica do regime, como a Segurança, os Comitês de Defesa e o Exército. A milícia era um instrumento da democracia revolucionária, a fase libertária da Revolução Cubana. 
A milícia era utilizada, mas ninguém tinha qualquer confiança nela. Isso exigiria que aqueles que detinham o poder o dividissem com uma instituição revolucionária a nível popular. Esta seria a segunda vez que a Revolução Cubana perderia a oportunidade de ter uma organização popular. O Movimento 26 de Julho foi o primeiro a ser descartado, depois seria a vez da milícia. O conceito russo-castrista que começou a tomar forma e controle criou uma estrutura de poder elitista: o povo se organizava em cadres, vigiados e administrados pela Segurança, pelo Exército e pela burocracia. Havia somente um líder que detinha todo o poder. Seu lema era "Trabalhe e Lute", e não "Pense, trabalhe e Lute". O povo imediatamente afeiçoou-se à combinação de instrução e discussão da milícia, que unia todos numa tarefa comum. O vermelho e o negro do Movimento 26 de Julho foram substituídos pelo azul da milícia. Mas os que detinham o poder recusaram-se a aceitar esta participação do povo no governo". (p. 49-50). 

Referências: 
FRANQUI, Carlos. RETRATO DE FAMÍLIA COM FIDEL. Fidel Castro Visto por um Ex-Íntimo. Ed. Record: RJ, 1981. 

quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

SOBRE PISCADELAS E ASSALTO A BANCO: UM ESFORÇO HERMENÊUTICo SOBRE O VELHO DURRUTI

 (Buenaventura Durruti)

Muitos de nós dizemos: sou contra a violência, sou contra qualquer ação ilegal. O povo pode se manifestar, mas por meios pacíficos e legais. E dessa forma reduzimos os nossos valores morais (o que definimos como certo e errado) aos limites do código penal. 

Eu acho isso uma limitação ao povo que sofre, pois muitas das conquistas sociais e mesmo políticas (direitos e liberdades) pressupõem necessariamente que antes não existiam e não eram permitidas. Mais ainda, que para serem conquistadas, foram feitas justamente ações que na época eram consideradas ilegais. 

Ninguém gosta de falar disso, mas se olharmos a história da educação no Brasil e no mundo, veremos que a educação dos operários dependeu, em muito, de ações ilegais do movimento operário anarquista. (veremos aqui o caso espanhol).

Mas, não quero convencê-los em defender ações ilegais. Longe de mim tal ideia. Quero apenas que aceitemos que a nossa capacidade de dizer o que é certo e o que é errado exige um esforço de compreensão do agir humano que extrapola em muito as definições do código penal. Em resumo, moral não pode se resumir à lei.

UM ESFORÇO HERMENÊUTICO

Gosto quando Geertz fala das piscadelas. Em síntese, com as minhas próprias palavras e algumas mudanças para tornar mais interessante e fácil, é mais ou menos assim. 

Imaginemos um homem que pisca porque tem um tique nervoso. E um outro homem ou uma mulher que pisca o olho para fazer uma cantada a um outro homem ou a uma outra mulher. 

Se tirássemos uma foto no momento exato em que fecham um dos olhos, não haveria diferença nenhuma entre as duas piscadelas. Mas, nós sabemos que, em termos de significado cultural, há uma diferença imensa entre piscar para cantar uma pessoa e piscar por mero reflexo nervoso. 

Nós descobrimos quão importante é compreendermos, diferenciarmos, bem os símbolos, essas piscadelas culturais, quando por não o fazermos bem confundimos e trocamos uma coisa por outra. Quando por exemplo, achamos que aquela garota que piscava por tique nervoso estava interessada em nós. Basta uma abordagem convencida para saber que a ausência de uma compreensão densa nos custará caro. 

Pois bem , hoje eu trouxe alguns relatos que narram algumas passagens da vida de Durruti, o operário espanhol do post passado. Os trechos são bem interessantes. Sei que muitos que lerão este texto condenam brutamente qualquer ação violenta e qualquer ação ilegal, tal como, por exemplo, um assalto a banco. Mas, lhes digo, leiam com atenção até o fim, e lhes desafio a me dizer se mesmo assaltos a bancos não necessitam de uma compreensão mais profunda: afinal, existem piscadelas e piscadeeelas.  

RELATOS RETIRADOS DO LIVRO O CURTO VERÂO DA ANARQUIA: 


DINHEIRO PARA A ESCOLA

Durante dez anos vivi precariamente, trabalhando como diarista, como ajudante numa forjaria e depois numa fundição; exerci mais ou menos uma dúzia de profissões diferentes até os vinte e oito anos, quando, meio sem querer, tornei-me professor. Não da universidade, mas de uma escola do povo, uma escola livre e gratuita em La Coruña, cidade que fica na Galícia, extremo noroeste da Espanha. Esta escola fora montada pelos sindicatos e pela CNT e era mantida pelos marinheiros, trabalhadores das docas e estivadores. O capital necessário para que iniciássemos as atividades fora conseguido por Durruti.

É claro que não fora obtido legalmente. Hoje posso afirmar tranquilamente: o dinheiro veio de um assalto. Não a um banco, mas a uma casa de câmbio. Durruti foi até lá e exigiu o dinheiro, com a pistola na mão. Houve um tiroteio, mas o sindicato recebeu a quantia necessária para iniciar as atividades da escola. Foi tudo o que aconteceu. 

Esse tipo de procedimento não pode ser julgado à luz do código penal burguês. O senhor veja bem, eu mesmo vivi situações em que estive a ponto de matar, se tivesse coragem para isso. É preciso ter visto a miséria, a terrível miséria que reinava na Espanha, para compreender o desespero desses homens e o motivo de suas ações. 
Gastón Leval
(P. 49-50)

A MÃE
Sua mãe dizia: 
___ Bem, neste caso eu acho que já não entendo mais o mundo. Nos jornais sempre dizem que Durruti fez isto ou aquilo, que estava aqui ou ali, mas toda vez que ele retorna para casa está vestido em trapos. Vejam só o estado dele! O que passa pela cabeça desses jornalistas? Tudo isso é mentira. Eles estão precisando de um bode expiatório. 

E vocês querem saber de uma coisa? Tudo isso era assim mesmo. Durante anos Durruti foi um demônio pintado em todos os muros da Espanha logo que acontecia alguma coisa num banco ou alguém explodia bombas. E sua mãe gritava: 

___ Isso não pode ser verdade. Toda vez que ele volta para casa eu tenho que costurar seus trapos, e nos jornais escrevem que ele tem pilhas de dinheiro. 

É certo que houve um monte de assaltos, mas o dinheiro que Durruti pegava com uma das mãos era passado adiante, com a outra, para as famílias dos prisioneiros e para a causa. Não há nada a esconder, vocês me entendem, não há nada de que nos envergonhar. 
Florentino Monroy 

O TRABALHO NA FÁBRICA

Ela se autodenominava "República dos Trabalhadores", mas o que fez com Durruti? Deportou-o para Bata, por vadiagem. Ascaso, Durruti e uma centena de outros foram deportados; eles, que ganhavam seu pão trabalhando nas fábricas durante toda a vida. Nunca foram como esses funcionários que ficam sentados o dia inteiro num escritório e recebem seus salários dos sindicatos. Durruti era a antítese do pelego: ele nunca recebeu nenhum tostão. 
Manuel Hernánde (p. 100-101). 

O ESPÓLIO
Era simplesmente inacreditável: ele não possuía nada, absolutamente nada. Tudo o que tinha era também de todos. Quando morreu, fiquei procurando algumas peças de roupa com as quais pudéssemos enterrá-lo. Por fim encontramos uma velha jaqueta de couro já inteiramente puída, uma calça de brim cáqui e um par de sapatos cheios de remendos. Em suma, ele era um homem que doara tudo o que possuía, não tinha mais nem um botão de camisa. Não possuia absolutamente nada. 
Ricardo Rionda Castro
(p. 300). 

Na bagagem de Durruti foram encontrados os seguintes pertences: um jogo de roupas de baixo, duas pistolas, um binóculo e um óculos de sol. Este era todo o seu inventário. 
José Peirats. 
(p. 300). 

Referência: 
ENZENSBERGER, Hans Magnus. O Curto Verão da Anarquia. SP: Companhia das Letras, 1987. 

quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

O CURTO VERÃO DA ANARQUIA: Primeiras participações de Durruti no movimento operário e a questão da violência

(Buenaventura Durruti)

De todos os livros que eu li, talvez o que mais tenha me marcado tenha sido O CURTO VERÃO DA ANARQUIA, de Hans Magnus Enzensberger. Eu o li quando eu tinha 16 anos e dava meus primeiros passos no movimento anarquista. Talvez por isso tenha me marcado tanto. Talvez, porque seja mesmo uma obra prima. O que importa é que, desde então, havia decidido que, se eu tivesse um filho, eu o homenagiaria com o nome de Durruti. 

O tempo passou e eu ainda não tenho filhos, mas nestes quinze anos em que conto aos amigos o nome do meu futuro filho inexistente, todos se espantam e falam: "Du o que? O quê que é isso? Não faça isso com ele". O certo é que pouca gente conhece Buenaventura Durruti, o operário anarquista espanhol que se tornou um grande mito na Espanha. 

Para resolver esse problema, eu sempre quero indicar para os amigos esse livro O CURTO VERÃO DA ANARQUIA. Mas, como nunca consigo encontrá-lo online, e na estante virtual ele custa 80,00 (fora o preço de envio), acho que seria justo compartilhar alguns trechos neste blog. 

Vou fazer isso em várias partes. Para hoje, selecionei alguns trechos que se encontram no início do livro. O primeiro trecho é a narrativa inicial de Ezensberg, pra chamar a atenção sobre Durruti e sobre o como em sua história se entrelaçam ficção e verdade. 

O segundo e o terceiro já tratam daquilo que quis centrar aqui: O início da participação de Durruti no movimento operário espanhol e o papel da violência. Trata-se de sua participação na greve de 1917, quando tinha apenas 19 anos. Acho que este tema é bastante atual para o contexto brasileiro, em que as manifestações de rua ganharam ao menos desde maio de 2013 um caráter combativo. Com vocês, O Curto Verão da Anarquia: 

HISTÓRIA COMO FICÇÃO COLETIVA



"Nenhum autor teria ousado escrever a história de sua vida: lembraria demais um romance de aventuras". Esta conclusão foi tirada por Ilya Erenburg em 1931, ano em que conheceu Buenaventura Durruti; logo depois pôs-se a escrever sobre ele. Em algumas poucas frases resumiu o que pensava sobre Durruti: "Desde muito jovem este operário metalúrgico lutou pela Revolução. Foi às barricadas, assaltou bancos, atirou bombas e sequestrou juízes. Foi três vezes condenado à morte: na Espanha, no Chile e na Argentina. Passou por um número incontável de presídios e foi expulso de oito países". 

Ora, mas esta negação do "romance de aventuras" revela um receio antigo do narrador, o de ser talvez considerado um mentiroso justamente onde ele nada cria, mas fala da 'realidade'. Pelo menos dessa vez gostaria de que lhes dessem crédito. Além disso, sobrevém a suspeita que ele próprio lança sobre si por meio de sua obra: "Ninguém acredita em pessoas que mentiram uma vez, mesmo que estejam dizendo a verdade". Para narrar a história de Durruti, Erenburg tem que se negar enquanto narrador. Essa negação da ficção oculta, ainda e por fim, o desgosto do autor de saber que não conseguiria narrar mais nada sobre Durruti, de que, do romance proibido, nada mais restava senão um vago eco de conversas num café espanhol. 

E no entanto Erenburg não consegue calar-se, não consegue esquecer na mesa do café os fatos que lhe foram contados. Todas as coisas que ouviu o dominam e o transformam num recontador de histórias. (...)

A GREVE GERAL
(Portada el ABC, 14 de agosto de 1917. Disponível em: https://antoniomaestre.files.wordpress.com/2012/11/huelga-14-agosto-1917.png. Acesso em 28-01-2015). 

Então veio a greve geral de 1917, que se estendeu por toda a Espanha. Nós já compreendíamos um pouco as coisas e fazíamos parte do sindicato socialista de León. Bem, na época não havia outro.

Fomos os primeiros a levar ares novos para o sindicato, tentando fazer com que ele não se degenerasse por inteiro através da corrupção. Eles sempre diziam que a eleição resolveria todos os problemas. Nós, ao contrário, dizíamos: não é só isso. Vocês também têm que pensar em outras coisas.

Tínhamos dezenove anos quando a greve geral estourou. Se foi violenta? E como! Na verdade fomos nós que provocamos a violência. O governo pôs o Exército atrás de nós. A greve havia sido convocada para a meia-noite. Em toda parte a Guardia Civil se aprontara para reprimir os trabalhadores quando saíssem das fábricas. Mas nós tínhamos feito planos para impedir que nossa greve fracassasse. Possuíamos algumas armas; não muitas, mas o suficiente para afugentar os soldados que já tinham ocupado a estação (para quem vinha do centro da cidade, ela já ficava do outro lado do rio). No escuro da noite, víamos brilhar as fardas militares. E então começou: bang! bang! bang! Foi quase uma pequena batalha, e nós nos divertimos muito.

Mas a Guardia Civil já estava no nosso encalço. Com os pequenos revólveres que tínhamos, não podíamos fazer muita coisa. O jeito foi procurar, no centro de Léon, alguns postes de alta tensão que fossem altos e estivessem ocultos por árvores. Subimos neles e ficamos bem escondidos. Cada um de nós enchera bolsos e bonés com pedras, atiradas nos policiais. Estes ficaram feito loucos, pois não sabiam de onde vinha a carga. No escuro, nossa 'munição' chegava a produzir faíscas na calçada. Era pedra pra todo lado! Os policiais atiravam os cavalos contra os manifestantes, mas não conseguiam nos descobrir.

Na verdade, isso não significou muito, mas serviu para que as pessoas percebessem que a luta passiva não levaria a nada. Pouco a pouco foi-se criando uma atmosfera revolucionária, semelhante àquela que mais tarde a CNT espalharia por todo o país.

Naturalmente, nessas lutas o comandante já era Durruti. 

Florentino Monroy 
(p.23-24). 



Os SINDICATOS
(Diario El Imparcial, 14 de agosto de 1917 (disponível em: https://antoniomaestre.files.wordpress.com/2012/11/imagen-11.png. Acesso: 28/01/2015). 


Por causa da greve de 1917, Durruti e alguns de seus companheiros foram expulsos do sindicato dos ferroviários, uma instituição dominada e manipulada pelos social-democratas. Durruti e seus amigos tinham tomado a greve ao pé da letra, sem perceber, em seu entusiasmo juvenil, que o movimento paredista era um ardil dos pelegos. Largo Caballero, Besteiro, Anguíano e Saborit, os líderes da social-democracia, tramaram a greve apenas para recuperar o poder que por um tempo lhe tinha fugido ao controle, entregando assim os trabalhadores de mãos e pés atados à direção das companhias ferroviárias.

Esta manobra sórdida e a comédia da punição dos culpados deram aos pelegos não só algumas cadeiras no Parlamento como também a possibilidade concreta de "limpar" os sindicatos ferroviários de seus filiados anarquistas. Em suas reuniões, os anarquistas se posicionavam contra a tática reformista e a influência dominante do partido social-democrata e lutavam por uma orientação realmente revolucionária no sindicato. 

Durruti era um dos mais rebeldes e um dos mais militantes entre os anarquistas. Com alguns companheiros, recusou-se a capitular diante dos patrões. Seu grupo, como muitos outros, passou à sabotagem em grande escala. Locomotivas eram queimadas, armazéns e lojas incendiados, trilhos arrancados. Esta tática deu resultado e muitos trabalhadores aderiram a ela. No entanto, quando estes atos de sabotagem tomaram proporções assustadoras, os socialistas ordenaram o fim da greve. 

Muitos organizadores do movimento, dentre os quais Durruti, perderam o emprego. Nessa época, o sindicato dos anarquistas, a Confederação Nacional do Trabalho, começou a crescer. Uma parte significativa do proletariado espanhol simpatizava com ela e era grande o número de filiações. Durruti rumou para o distrito mineiro das Astúrias, verdadeiro foco dos social-democratas, para fazer propaganda da linha anarquista pregada pela CNT, contra o sindicalismo neutro e reformista. Com isso, caiu na lista negra, perdeu de novo o emprego e teve de emigrar para a França. 

V. de Rol 
(p. 24-25)

Referência: 
ENZENSBERGER, Hans Magnus. O Curto Verão da Anarquia. SP: Companhia das Letras, 1987.