segunda-feira, 9 de março de 2015

A BATALHA DO CHILE: UM DOCUMENTÁRIO QUE CAPTA AS TENSÕES ENTRE O GOVERNO DE ALLENDE E O PODER POPULAR





Recentemente, uma amiga esteve no Chile, a turismo. Ao chegar por lá no dia 11 de setembro, percebeu que era feriado nacional. Se entristeceu, dizendo: “Ora, mas os EUA têm poder mesmo. Até no Chile decretaram feriado por conta do atentado às torres gêmeas?”.

O que ela não sabia é que o feriado no Chile não está relacionado ao 11 de setembro de 2001, mas ao 11 de setembro de 1973, quando o governo de Salvador Allende foi derrubado por um golpe das forças armadas liderado pelo general Augusto Pinochet.

Se há algo muito pouco estudado no ensino básico brasileiro é a experiência chilena durante este governo da Unidad Popular, encabeçado por Salvador Allende.

Não é nossa intenção discutir todas as questões do tema, mas simplesmente indicar este excelente documentário feito pelo chileno Patricio Guzmán. Trata-se de um dos principais documentários políticos que eu já assisti. Ele tem vários problemas, como por exemplo, a narrativa do narrador que, por vezes, direciona demais a interpretação do processo chileno.

Mas, fora isso, é especialmente brilhante o modo como capta a voz dos trabalhadores chilenas, como estavam organizados em seus organismos de poder popular e como interpretavam seu papel e o momento em que viviam.

O que penso que seja realmente grandioso neste filme, e que aparece especialmente na PARTE II e III, é o modo como consegue captar as tensões existentes entre os mecanismos de poder popular (as organizações diretamente gerida pelos próprios trabalhadores, tais como os cordões de fábrica, os conselhos comunais, etc.) - que a partir dos lockouts (boicotes da burguesia) começaram a organizar diretamente a produção e distribuição, vinculando a democracia das fábricas à auto-organização dos trabalhadores nos bairros – e o governo popular do “compañero” presidente Salvador Allende.

Essa tensão aparece na documentação histórica em distintos momentos. Embora Allende seja efetivamente querido pelos trabalhadores, na medida em que estes se organizam e passam a gerir cada vez mais o trabalho e a organização da vida social, começam a exigir do governo uma atitude mais revolucionária.

Os trabalhadores, por exemplo, começam a ocupar as fábricas e fazendas, exigindo mais nacionalizações e mais indústrias e fazendas sob o controle dos trabalhadores. Queriam, assim, resolver o problema da crise de abastecimento e, ao mesmo tempo, retirar o poder econômico das empresas que produziam o boicote.

Porém, o governo começa a frear tais iniciativas. Isso ocorre, por um lado, pelos limites legais institucionais, cujas nacionalizações das fazendas, por exemplo, precisavam obedecer à lei da reforma agrária, e as nacionalizações das indústrias (depois de uma lei criada para isso) deveriam ser submetidas ao congresso. Dessa forma, o poder popular (as organizações de base diretamente controlada pelos trabalhadores) apresenta um desejo de ir para além do limite institucional. Para tanto, apresentam uma alternativa, que havia sido estimulada pelo MIR: o fechamento do congresso e sua substituição pela assembleia popular (uma espécie de conselho popular de democracia direta).

Por outro lado, o governo começa a frear os organismos populares também por sua política de alianças. Ao menos no último ano, Allende estava convencido de que longe de seguir o ataque aos interesses das empresas privadas, deveria-se parar as ocupações, mostrar ponderação, para ganhar o apoio do Partido Democrata Cristão, e assim, estabelecer um Pacto pela legalidade. Temia-se que a radicalização dos organismos de poder popular fosse usada para justificar e apressar o golpe militar. (DESTAQUE PARA A PARTE II DO FILME, A PARTIR DE 40 minutos e 15, EM QUE SE DÁ UM DIÁLOGO ENTRE TRABALHADORES DOS CORDÕES E UM REPRESENTANTE DA CUT – CENTRAL ÚNICA DOS TRABALHADORES. ASSISTAM!!!).  

Os trabalhadores chegaram a clamar por armas para enfrentar o fascismo. Mas, Allende optou pela via diplomática. A estratégia não funcionou. Os democratas cristãos não estavam interessados em se aliar com o governo. O golpe veio e o povo, disposto a lutar contra o fascismo, não tinha armas para se defender.

Dentre a esquerda que analisa hoje o golpe, alguns culpam a pressa dos trabalhadores e suas correntes políticas mais radicais, tais como o MIR e o PS, que acabaram menosprezando a força da reação e a provocando. Outros culpam a lentidão do governo, que ao invés de dar um golpe nos poderes econômicos e políticos da burguesia, confiando o poder na auto-organização dos trabalhadores, preferiu tratar o inimigo dentro das regras do jogo. 

De todo modo, para qualquer uma dessas análises, este é um grande filme, pois consegue, apesar de alguns limites, dar conta da complexidade das relações de adoração e tensão entre governo e poderes populares. 

O rock no diminutivo



É claro que não é possível ouvir música como Nietzsche, por exemplo, a escutava. Mas, algumas de suas críticas a Wagner são, para mim, alguém que vive no tempo do rock mais bonitinho e comportado, grandes elogios.  Ele dizia:

"Aí está um músico que supera qualquer outro na arte de extrair tonalidades do mundo das almas sofredoras, oprimidas, torturadas e que consegue dar voz à muda desolação. Ninguém o iguala no matizado de fim de outono, na felicidade indizivelmente comovedora do último, do derradeiro, do mais breve prazer; conhece a tonalidade que convém a essas meias-noites secretas e inquietantes da alma, em que causa e efeito parecem escapar a toda e qualquer lei, em que a cada momento algo pode nascer 'do nada'. (...) Conhece como a alma se arrasta, fatigada, quando já não consegue mais correr nem voar, nem mesmo caminhar; tem o olhar sombrio da dor escondida, da compreensão que não consola, dos adeuses sem confissão; sim, Orfeu de todas as misérias secretas, não possui rival e, graças a ele que, como primeiro, a arte acrescentou a si mesmo aquilo que até então parecia inexprimível e mesmo indigno da arte - por exemplo, as cínicas revoltas de que somente o auge do sofrimento é capaz, bem como muitos indecifráveis e microscópicos momentos da alma, por assim dizer, as escamas de sua natureza anfíbia. (...). Wagner foi alguém que sofreu profundamente - essa é sua superioridade sobre os outros músicos. __ Admiro Wagner sempre que se debruça sobre si própria em música. (...)

Isso não significa que eu considere essa música como sadia e, de modo particular, precisamente quando se fala de Wagner. Minhas objeções contra a música de Wagner são objeções fisiológicas: por que tentar disfarçá-las ainda sob fórmulas estéticas? A estética não passa, na realidade, de uma fisiologia aplicada. Para mim o "fato", meu "pequeno fato verdadeiro", é que não respiro mais facilmente a partir do momento em que essa música começa a agir sobre mim; meu pé logo se irrita e se revolta contra ela: porque meu pé tem necessidade de cadência, de dança, de marcha - até o jovem imperador da Alemanha não poderia marchar ao passo e ao som da 'marcha do imperador' de Wagner - porque exige da música acima de tudo os arrebatamentos para avançar corretamente, para caminhar corretamente, para dançar bem. Mas será que meu estômago não vai protestar também? E meu coração? E minha circulação sanguínea? Minhas entranhas não vão estar aflitas? Será que não vou enrouquecer sem querer? (...) Isso me leva a colocar a seguinte questão: o que meu corpo inteiro quer, pois, da música? Pois a alma não existe... Quer, acredito, seu alívio: como se todas as funções animais tivessem necessidade de ser estimuladas por ritmos leves, ousados, cheios de animação, seguros de si; como se o bronze e o chumbo da vida devessem esquecer seu peso graças ao ouro das ternas e untuosas melodias. Minha melancolia aspira ao repouso nos recônditos e nos abismos da perfeição: é por isso que tenho necessidade da música. Mas Wagner causa doença".

Acho que Nietzsche é completamente original e necessário ao pensar a estética a partir da fisiologia. Sim, precisamos nos perguntar o que as músicas de hoje, as músicas que ouvimos ou descartamos, produzem em nosso corpo.

O rock pós Stroke e Los Hermanos é tão bonitinho, tão comportado, tão superficial, que basta vermos a reação dos corpos dos fãs durante os shows, para termos uma percepção exata do tipo de vida que este rock nos traz. Os sorrisinhos no rosto, a cara de apaixonadinhos felizinhos. É um rock no diminutivo. Um rockinho. Não precisa dizer que é um rock para jovens bem de vida. Não protestam os estômagos. Porque o fariam? Os pratos estiveram sempre cheios. Onde está a garra, a raíz, a força,  a revolta e resistência que essa juventude demonstrou nas ruas?

sexta-feira, 6 de março de 2015

Quem nasceu depois de 89



O velho ranzinza que vive dentro de mim é uma figura extremamente radical e injusta. Ele anda, entre uma baforada e outra de cigarro, me dizendo assim: 

"O que há de pior nessa geração que nasceu depois de 89, além dessa desconfiança natural que seus membros possuem das grandes teorias, é esse desejo orwelliano de destruição da língua e de criação de um novo dicionário com o menor número de palavras possível. É uma coisa meio novilingua, sabe?

Sou de uma época em que as pessoas diziam: “Ela tentou evitar o sorriso, mas em um movimento involuntário dos nervos do rosto, os lábios se abriram e derrubaram, vitoriosos, os deuses da ironia e da beleza aos seus pés”.

Agora não. Essa geração quando quer sorrir solta simplesmente um rs (que nós, com mais de 30, tendemos a ler como se lê onomatopeia, um rrrrs, com R de gargarejo bem típico dos alemães). É assustador! É uma espécie de Adolf Hitler satirizado no Bastardos Inglórios (filme bem típico dessa geração).

Pensa! Você está no meio de uma conversa interessante e meiga e, de repente, ao invés da pessoa sorrir involuntariamente, ela solta esse rrrrs meio que escarrando em nossa cara. É constrangedor!!!

E não preciso dizer que isso é extremamente conservador. Trata-se da suspensão do elemento estético e da vitória, estrondosa, do pragmatismo estadunidense na linguagem. Tudo se torna rápido, econômico, lucrativo, ninguém se dá ao trabalho de se deter sobre algo de modo arrebatador.

Mas, não devemos culpá-los. Eles nasceram depois de 89. Como esperar que não carreguem em si mesmos um muro se desmoronando?

Por mais que hajam alguns dentre eles que sejam simpáticos ao comunismo, estão todos, mesmo na militância que fazem, enredados em uma linguagem de fim da história”.