quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

SOBRE PISCADELAS E ASSALTO A BANCO: UM ESFORÇO HERMENÊUTICo SOBRE O VELHO DURRUTI

 (Buenaventura Durruti)

Muitos de nós dizemos: sou contra a violência, sou contra qualquer ação ilegal. O povo pode se manifestar, mas por meios pacíficos e legais. E dessa forma reduzimos os nossos valores morais (o que definimos como certo e errado) aos limites do código penal. 

Eu acho isso uma limitação ao povo que sofre, pois muitas das conquistas sociais e mesmo políticas (direitos e liberdades) pressupõem necessariamente que antes não existiam e não eram permitidas. Mais ainda, que para serem conquistadas, foram feitas justamente ações que na época eram consideradas ilegais. 

Ninguém gosta de falar disso, mas se olharmos a história da educação no Brasil e no mundo, veremos que a educação dos operários dependeu, em muito, de ações ilegais do movimento operário anarquista. (veremos aqui o caso espanhol).

Mas, não quero convencê-los em defender ações ilegais. Longe de mim tal ideia. Quero apenas que aceitemos que a nossa capacidade de dizer o que é certo e o que é errado exige um esforço de compreensão do agir humano que extrapola em muito as definições do código penal. Em resumo, moral não pode se resumir à lei.

UM ESFORÇO HERMENÊUTICO

Gosto quando Geertz fala das piscadelas. Em síntese, com as minhas próprias palavras e algumas mudanças para tornar mais interessante e fácil, é mais ou menos assim. 

Imaginemos um homem que pisca porque tem um tique nervoso. E um outro homem ou uma mulher que pisca o olho para fazer uma cantada a um outro homem ou a uma outra mulher. 

Se tirássemos uma foto no momento exato em que fecham um dos olhos, não haveria diferença nenhuma entre as duas piscadelas. Mas, nós sabemos que, em termos de significado cultural, há uma diferença imensa entre piscar para cantar uma pessoa e piscar por mero reflexo nervoso. 

Nós descobrimos quão importante é compreendermos, diferenciarmos, bem os símbolos, essas piscadelas culturais, quando por não o fazermos bem confundimos e trocamos uma coisa por outra. Quando por exemplo, achamos que aquela garota que piscava por tique nervoso estava interessada em nós. Basta uma abordagem convencida para saber que a ausência de uma compreensão densa nos custará caro. 

Pois bem , hoje eu trouxe alguns relatos que narram algumas passagens da vida de Durruti, o operário espanhol do post passado. Os trechos são bem interessantes. Sei que muitos que lerão este texto condenam brutamente qualquer ação violenta e qualquer ação ilegal, tal como, por exemplo, um assalto a banco. Mas, lhes digo, leiam com atenção até o fim, e lhes desafio a me dizer se mesmo assaltos a bancos não necessitam de uma compreensão mais profunda: afinal, existem piscadelas e piscadeeelas.  

RELATOS RETIRADOS DO LIVRO O CURTO VERÂO DA ANARQUIA: 


DINHEIRO PARA A ESCOLA

Durante dez anos vivi precariamente, trabalhando como diarista, como ajudante numa forjaria e depois numa fundição; exerci mais ou menos uma dúzia de profissões diferentes até os vinte e oito anos, quando, meio sem querer, tornei-me professor. Não da universidade, mas de uma escola do povo, uma escola livre e gratuita em La Coruña, cidade que fica na Galícia, extremo noroeste da Espanha. Esta escola fora montada pelos sindicatos e pela CNT e era mantida pelos marinheiros, trabalhadores das docas e estivadores. O capital necessário para que iniciássemos as atividades fora conseguido por Durruti.

É claro que não fora obtido legalmente. Hoje posso afirmar tranquilamente: o dinheiro veio de um assalto. Não a um banco, mas a uma casa de câmbio. Durruti foi até lá e exigiu o dinheiro, com a pistola na mão. Houve um tiroteio, mas o sindicato recebeu a quantia necessária para iniciar as atividades da escola. Foi tudo o que aconteceu. 

Esse tipo de procedimento não pode ser julgado à luz do código penal burguês. O senhor veja bem, eu mesmo vivi situações em que estive a ponto de matar, se tivesse coragem para isso. É preciso ter visto a miséria, a terrível miséria que reinava na Espanha, para compreender o desespero desses homens e o motivo de suas ações. 
Gastón Leval
(P. 49-50)

A MÃE
Sua mãe dizia: 
___ Bem, neste caso eu acho que já não entendo mais o mundo. Nos jornais sempre dizem que Durruti fez isto ou aquilo, que estava aqui ou ali, mas toda vez que ele retorna para casa está vestido em trapos. Vejam só o estado dele! O que passa pela cabeça desses jornalistas? Tudo isso é mentira. Eles estão precisando de um bode expiatório. 

E vocês querem saber de uma coisa? Tudo isso era assim mesmo. Durante anos Durruti foi um demônio pintado em todos os muros da Espanha logo que acontecia alguma coisa num banco ou alguém explodia bombas. E sua mãe gritava: 

___ Isso não pode ser verdade. Toda vez que ele volta para casa eu tenho que costurar seus trapos, e nos jornais escrevem que ele tem pilhas de dinheiro. 

É certo que houve um monte de assaltos, mas o dinheiro que Durruti pegava com uma das mãos era passado adiante, com a outra, para as famílias dos prisioneiros e para a causa. Não há nada a esconder, vocês me entendem, não há nada de que nos envergonhar. 
Florentino Monroy 

O TRABALHO NA FÁBRICA

Ela se autodenominava "República dos Trabalhadores", mas o que fez com Durruti? Deportou-o para Bata, por vadiagem. Ascaso, Durruti e uma centena de outros foram deportados; eles, que ganhavam seu pão trabalhando nas fábricas durante toda a vida. Nunca foram como esses funcionários que ficam sentados o dia inteiro num escritório e recebem seus salários dos sindicatos. Durruti era a antítese do pelego: ele nunca recebeu nenhum tostão. 
Manuel Hernánde (p. 100-101). 

O ESPÓLIO
Era simplesmente inacreditável: ele não possuía nada, absolutamente nada. Tudo o que tinha era também de todos. Quando morreu, fiquei procurando algumas peças de roupa com as quais pudéssemos enterrá-lo. Por fim encontramos uma velha jaqueta de couro já inteiramente puída, uma calça de brim cáqui e um par de sapatos cheios de remendos. Em suma, ele era um homem que doara tudo o que possuía, não tinha mais nem um botão de camisa. Não possuia absolutamente nada. 
Ricardo Rionda Castro
(p. 300). 

Na bagagem de Durruti foram encontrados os seguintes pertences: um jogo de roupas de baixo, duas pistolas, um binóculo e um óculos de sol. Este era todo o seu inventário. 
José Peirats. 
(p. 300). 

Referência: 
ENZENSBERGER, Hans Magnus. O Curto Verão da Anarquia. SP: Companhia das Letras, 1987. 

quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

O CURTO VERÃO DA ANARQUIA: Primeiras participações de Durruti no movimento operário e a questão da violência

(Buenaventura Durruti)

De todos os livros que eu li, talvez o que mais tenha me marcado tenha sido O CURTO VERÃO DA ANARQUIA, de Hans Magnus Enzensberger. Eu o li quando eu tinha 16 anos e dava meus primeiros passos no movimento anarquista. Talvez por isso tenha me marcado tanto. Talvez, porque seja mesmo uma obra prima. O que importa é que, desde então, havia decidido que, se eu tivesse um filho, eu o homenagiaria com o nome de Durruti. 

O tempo passou e eu ainda não tenho filhos, mas nestes quinze anos em que conto aos amigos o nome do meu futuro filho inexistente, todos se espantam e falam: "Du o que? O quê que é isso? Não faça isso com ele". O certo é que pouca gente conhece Buenaventura Durruti, o operário anarquista espanhol que se tornou um grande mito na Espanha. 

Para resolver esse problema, eu sempre quero indicar para os amigos esse livro O CURTO VERÃO DA ANARQUIA. Mas, como nunca consigo encontrá-lo online, e na estante virtual ele custa 80,00 (fora o preço de envio), acho que seria justo compartilhar alguns trechos neste blog. 

Vou fazer isso em várias partes. Para hoje, selecionei alguns trechos que se encontram no início do livro. O primeiro trecho é a narrativa inicial de Ezensberg, pra chamar a atenção sobre Durruti e sobre o como em sua história se entrelaçam ficção e verdade. 

O segundo e o terceiro já tratam daquilo que quis centrar aqui: O início da participação de Durruti no movimento operário espanhol e o papel da violência. Trata-se de sua participação na greve de 1917, quando tinha apenas 19 anos. Acho que este tema é bastante atual para o contexto brasileiro, em que as manifestações de rua ganharam ao menos desde maio de 2013 um caráter combativo. Com vocês, O Curto Verão da Anarquia: 

HISTÓRIA COMO FICÇÃO COLETIVA



"Nenhum autor teria ousado escrever a história de sua vida: lembraria demais um romance de aventuras". Esta conclusão foi tirada por Ilya Erenburg em 1931, ano em que conheceu Buenaventura Durruti; logo depois pôs-se a escrever sobre ele. Em algumas poucas frases resumiu o que pensava sobre Durruti: "Desde muito jovem este operário metalúrgico lutou pela Revolução. Foi às barricadas, assaltou bancos, atirou bombas e sequestrou juízes. Foi três vezes condenado à morte: na Espanha, no Chile e na Argentina. Passou por um número incontável de presídios e foi expulso de oito países". 

Ora, mas esta negação do "romance de aventuras" revela um receio antigo do narrador, o de ser talvez considerado um mentiroso justamente onde ele nada cria, mas fala da 'realidade'. Pelo menos dessa vez gostaria de que lhes dessem crédito. Além disso, sobrevém a suspeita que ele próprio lança sobre si por meio de sua obra: "Ninguém acredita em pessoas que mentiram uma vez, mesmo que estejam dizendo a verdade". Para narrar a história de Durruti, Erenburg tem que se negar enquanto narrador. Essa negação da ficção oculta, ainda e por fim, o desgosto do autor de saber que não conseguiria narrar mais nada sobre Durruti, de que, do romance proibido, nada mais restava senão um vago eco de conversas num café espanhol. 

E no entanto Erenburg não consegue calar-se, não consegue esquecer na mesa do café os fatos que lhe foram contados. Todas as coisas que ouviu o dominam e o transformam num recontador de histórias. (...)

A GREVE GERAL
(Portada el ABC, 14 de agosto de 1917. Disponível em: https://antoniomaestre.files.wordpress.com/2012/11/huelga-14-agosto-1917.png. Acesso em 28-01-2015). 

Então veio a greve geral de 1917, que se estendeu por toda a Espanha. Nós já compreendíamos um pouco as coisas e fazíamos parte do sindicato socialista de León. Bem, na época não havia outro.

Fomos os primeiros a levar ares novos para o sindicato, tentando fazer com que ele não se degenerasse por inteiro através da corrupção. Eles sempre diziam que a eleição resolveria todos os problemas. Nós, ao contrário, dizíamos: não é só isso. Vocês também têm que pensar em outras coisas.

Tínhamos dezenove anos quando a greve geral estourou. Se foi violenta? E como! Na verdade fomos nós que provocamos a violência. O governo pôs o Exército atrás de nós. A greve havia sido convocada para a meia-noite. Em toda parte a Guardia Civil se aprontara para reprimir os trabalhadores quando saíssem das fábricas. Mas nós tínhamos feito planos para impedir que nossa greve fracassasse. Possuíamos algumas armas; não muitas, mas o suficiente para afugentar os soldados que já tinham ocupado a estação (para quem vinha do centro da cidade, ela já ficava do outro lado do rio). No escuro da noite, víamos brilhar as fardas militares. E então começou: bang! bang! bang! Foi quase uma pequena batalha, e nós nos divertimos muito.

Mas a Guardia Civil já estava no nosso encalço. Com os pequenos revólveres que tínhamos, não podíamos fazer muita coisa. O jeito foi procurar, no centro de Léon, alguns postes de alta tensão que fossem altos e estivessem ocultos por árvores. Subimos neles e ficamos bem escondidos. Cada um de nós enchera bolsos e bonés com pedras, atiradas nos policiais. Estes ficaram feito loucos, pois não sabiam de onde vinha a carga. No escuro, nossa 'munição' chegava a produzir faíscas na calçada. Era pedra pra todo lado! Os policiais atiravam os cavalos contra os manifestantes, mas não conseguiam nos descobrir.

Na verdade, isso não significou muito, mas serviu para que as pessoas percebessem que a luta passiva não levaria a nada. Pouco a pouco foi-se criando uma atmosfera revolucionária, semelhante àquela que mais tarde a CNT espalharia por todo o país.

Naturalmente, nessas lutas o comandante já era Durruti. 

Florentino Monroy 
(p.23-24). 



Os SINDICATOS
(Diario El Imparcial, 14 de agosto de 1917 (disponível em: https://antoniomaestre.files.wordpress.com/2012/11/imagen-11.png. Acesso: 28/01/2015). 


Por causa da greve de 1917, Durruti e alguns de seus companheiros foram expulsos do sindicato dos ferroviários, uma instituição dominada e manipulada pelos social-democratas. Durruti e seus amigos tinham tomado a greve ao pé da letra, sem perceber, em seu entusiasmo juvenil, que o movimento paredista era um ardil dos pelegos. Largo Caballero, Besteiro, Anguíano e Saborit, os líderes da social-democracia, tramaram a greve apenas para recuperar o poder que por um tempo lhe tinha fugido ao controle, entregando assim os trabalhadores de mãos e pés atados à direção das companhias ferroviárias.

Esta manobra sórdida e a comédia da punição dos culpados deram aos pelegos não só algumas cadeiras no Parlamento como também a possibilidade concreta de "limpar" os sindicatos ferroviários de seus filiados anarquistas. Em suas reuniões, os anarquistas se posicionavam contra a tática reformista e a influência dominante do partido social-democrata e lutavam por uma orientação realmente revolucionária no sindicato. 

Durruti era um dos mais rebeldes e um dos mais militantes entre os anarquistas. Com alguns companheiros, recusou-se a capitular diante dos patrões. Seu grupo, como muitos outros, passou à sabotagem em grande escala. Locomotivas eram queimadas, armazéns e lojas incendiados, trilhos arrancados. Esta tática deu resultado e muitos trabalhadores aderiram a ela. No entanto, quando estes atos de sabotagem tomaram proporções assustadoras, os socialistas ordenaram o fim da greve. 

Muitos organizadores do movimento, dentre os quais Durruti, perderam o emprego. Nessa época, o sindicato dos anarquistas, a Confederação Nacional do Trabalho, começou a crescer. Uma parte significativa do proletariado espanhol simpatizava com ela e era grande o número de filiações. Durruti rumou para o distrito mineiro das Astúrias, verdadeiro foco dos social-democratas, para fazer propaganda da linha anarquista pregada pela CNT, contra o sindicalismo neutro e reformista. Com isso, caiu na lista negra, perdeu de novo o emprego e teve de emigrar para a França. 

V. de Rol 
(p. 24-25)

Referência: 
ENZENSBERGER, Hans Magnus. O Curto Verão da Anarquia. SP: Companhia das Letras, 1987. 

terça-feira, 27 de janeiro de 2015

MÚSICA E PROTESTO: Joe Hill, operário e folk singer anarquista

Em 2015, fazem 100 anos que Joe Hill foi assassinado pelo Estado. Quase ninguém o conhece e quando sabe alguma coisa dele, é devido ao fato de que Joan Baez (a belíssima) cantou uma música em sua homenagem durante o Woodstock. Dá pra ver sua apresentação aqui:
Eu tenho me sentido ligado a esse antigo operário anarquista e cantor de folk, a quem  alguns atribuem o surgimento da música de protesto. Hill nasceu em 1879, na Suécia,  mas foi radicado nos EUA e era bastante atuante na Internacional dos Trabalhadores (IWW), tendo composto muitas músicas para a sua classe.

Ele nasceu em 07 de outubro (data em que eu também nasci exatamente 100 anos depois) e foi fuzilado com 36 anos em 1915. É uma questão matemática, mas ainda assim estranha, pois no centenário de sua morte eu irei completar a idade exata em que ele foi assassinado.

Como dizia Utah Phillips, um outro cantor folk vinculado à Internacional, mas de uma geração bem posterior, Joe Hill, como trabalhador, cantava pra ajudar os seus companheiros de trabalho a definir seus problemas e a definir também as soluções para os seus problemas.

Uma das principais músicas que ele fez foi a música The Preacher and The Slave, cujos primeiros versos eu traduzo aqui:
"Pregadores de cabelos compridos saem todas as noites,
para te dizer o que é errado e o que é certo;
Mas quando você lhes pede algo para comer;
Eles irão responder com vozes tão doces:
REFRÃO:
Você vai comer
Na terra gloriosa que há acima do céu;
Trabalhar e rezar, viver no feno,
Você vai comer uma torta no céu quando morrer.

Dá pra ouvir a canção aqui na voz de um outro grande cantor folk também envolvido na internacional dos trabalhadores, Cisco Houston, porque Joe não nos legou nenhuma, nenhuma sequer gravação de suas músicas:


A história do Joe Hill é bem foda porque ele foi baleado no mesmo dia em que duas pessoas foram assassinadas em Salt Lake City, estado de Utah, e os assassinos foram feridos pela polícia. O médico que atendeu Joe Hill informou à polícia que havia atendido no dia um homem baleado, e Joe Hill foi acusado de assassinato duplo.

Ninguém acreditou que ele tinha mesmo matado aquelas duas pessoas. Mas, Joe Hill jamais disse, durante o julgamento, por quem e por quê ele foi baleado. Ele dizia que era o direito dele não prestar informações de sua vida pessoal para o Estado.

O seu advogado de defesa disse em uma apelação que  o único motivo do Estado querer condená-lo era porque ele era um membro da temida Internacional dos trabalhadores. E que sendo parte dela, é obvio que ele era já de antemão culpado.

Utah Phillips, um outro cantor de folk, membro da Internacional dos trabalhadores,  disse em um show que Joe Hill foi morto por suas músicas, que efetivamente causavam muito incômodo na época, uma vez que pisavam em todo o status quo (Igreja, Estado, Propriedade, etc).

De todo modo, não havia efetivamente prova nenhuma (a arma do crime não foi encontrada e nada ligava Joe Hill aos assassinados nem ao local do crime. Ao mesmo tempo, muitos outras pessoas apareceram baleadas em Salt Lake City naquele dia, embora nenhuma outro fosse parte da Internacional ).

Os protestos contra o julgamento por parte dos operários foram grandes, de tal modo que mesmo o presidente dos EUA, na época o Woodrow Wilson, pediu por clemência. Mas, o Estado de Utah negou. Não havia provas, mas, faltava para Joe Hill um álibe que ele recusava a apresentar.

Anos depois, um biógrafo de Joe Hill, William Adler, numa biografia de 2011, descobriu uma carta, que não foi usada no julgamento (me parece porque o próprio Joe Hill não quis que a usassem), de uma mulher chamada Hilda Erickson.

Na carta, ela explicava que era amante de Joe Hill e também de seu amigo Otto Appelquist, sem que um soubesse do outro, e que Joe Hill havia lhe confessado que havia sido Otto, ao descobrir que Joe também era amante de Erikson, quem o baleou naquele dia. A carta mostrava assim que o tiro que Joe Hill havia levado não fora do policial, mas de seu amigo, e que portanto ele não havia assassinado ninguém.

É possível que Joe Hill apenas não quisesse expor sua amada e, quem sabe, o ex-amigo, publicamente e por isso tenha aceitado, ao se calar sobre o que havia ocorrido, a pena de morte por homicidio duplo.

Foi fuzilado em 19 de novembro de 1915. Mas, antes disso ele escreveu uma poesia intitulada My Last Will (Meu último desejo), que foi musicada, anos depois por Ethel Raim, outro compositor das lutas, ficando conhecida para a posteridade como Joe Hill's last will.
E dizia assim:

My will is easy to decide,
For there is nothing to divide.
My kin don't need to fuss and moan,
"Moss does not cling to a rolling stone."

My body? Oh, if I could choose
I would to ashes it reduce,
And let the merry breezes blow,
My dust to where some flowers grow.

Perhaps some fading flower then
Would come to life and bloom again.
This is my Last and final Will.
Good Luck to All of you,
Joe Hill

A tradução seria mais ou menos assim:

Minha vontade é fácil de decidir,
Pois não há nada a se dividir.
Meus parentes não precisam mexer e gemer,
"Musgo não se apega a uma pedra que rola."

Meu corpo? Ah, se eu pudesse escolher
Eu o reduziria a cinzas,
E deixaria a brisa soprar alegre
Minha poeira para onde algumas flores crescem.

Talvez alguma flor murcha, em seguida,
Viria à vida e floresceria novamente.
Esta é a minha última e definitiva vontade
Boa sorte a todos vocês,
Joe Hill

Joe Hill também havia escrito uma carta a um amigo, um dia antes da sua morte, em que ele dizia: "Don't waste time morning for me, organize". "Não perca o tempo da manhã por mim, organize".

No dia em que ele foi fuzilado,  a polícia encontrou uma bomba de dinamite na propriedade do presidente da Standard Oil Company, e concluiu que a bomba havia sido plantada por anarquistas como protesto contra o fuzilamento de Joe. O corpo de Joe Hill foi cremado e no seu funeral compareceram em torno de 20.000 trabalhadores.

Ainda hoje, eu fico perturbado com o silêncio de Joe Hill em seu tribunal. Como ele pôde preferir a morte a se salvar? Acho que constantemente somos colocados nesta situação, de saber que não somos culpados, mas que é melhor se calar e deixar que o Estado faça o que ele está destinado a fazer: assassinar os lutadores, suas canções e suas lutas.

Em 1989 foi encontrado um envelope com as cinzas de Joe Hill. Acontece que o Abbie Hoffman... peraí, pois este cara precisa de um parênteses. Quem é Abbie Hoffman? Ele era um ativista que se tornou símbolo da geração de 68. Um incidente lendário que ele provocou foi quando subiu no palco do The Who durante o Woodstock e disse "Eu acho que isto aqui é um monte de merda. Enquanto John Sinclair apodrece na prisão...". Nessa hora, o Peter Townshed estava mexendo no amplificador de guitarra e ao ouvir o Abbie falando isso, gritou o interrompendo: "Fuck off. Vaza do meu palco". E enfim, partiu pra cima do Abbie, o expulsando dali. Depois ainda anunciou que qualquer outro que invadisse aquele palco seria morto. Nenhuma câmara gravou o incidente, mas o áudio sim. E o The Who colocou em um disco deles lançado 30 anos depois. Dá pra ouvir aqui:


Acontece que o Abbie Hoffman lançou a ideia de que os cantores folks de protesto modernos, como Billy Bragg, um cara que eu sou fã há um tempão, e Michelle Schoked, deveriam comer estas cinzas.

Mas, Billy Bragg havia se lembrado que Michelle, que era uma cantora bem atuante, tinha se tornado cristã e estava cantando músicas religiosas. Desse modo, ele achava que não seria a vontade de Joe Hill ir parar na barriga de uma religiosa.

Então ele chamou Otis Gibbs, um cantor de folk de protesto, também envolvido em lutas sociais, para dividir com ele as cinzas de Joe Hill. Assim o fizeram. Dizem que eles tomaram as cinzas de Hill em um copo de cerveja e andam espalhando por aí, como queria Joe Hill, suas flores em forma de canção.

Otis Gibbs fez um disco intitulado Joe Hill's Ashes (Cinzas de Joe Hill), cuja primeira música é essa linda canção aqui, que infelizmente, não se encontra a letra em lugar algum da internet:

Billy Bragg também cantou músicas em homenagem a Joe Hill, uma delas é essa:


Mas, a melhor versão desta música é mesmo a original feita por Phil Ochs


Agora, em 2015, que é aniversário do centenário de sua morte, Joe Mccucheon, outro cantor folk, está gravando um album com 20 músicas de Joe Hill. Ele fez o projeto "Joe Hills last will" para arrecadar fundos para este disco e fazer o disco de forma independente, sem gravadora, afinal, seria uma contradição terrível fechar com a indústria da música. O seu propósito é tornar Joe Hill e suas músicas conhecidas.

Para ajudar este projeto, outro grande cantor folk Si Kahn, que já tinha feito uma música para Jon Hill, fez uma outra canção:


Enfim, o projeto foi um sucesso e arrecadou a grana toda já. O disco deve ser lançado este ano.

Conclusões

Não sei que relevância isso tem hoje, nem porque essas histórias me interessam tanto. Acho que talvez seja o que há por trás de todos estes cantores folks que sempre se recusaram, como dizia Woody Guthrie (aquele que Bob Dylan já quis ser e que ele próprio quis ser Joe Hill), a se afastar das massas de trabalhadores que sofrem. É pra eles que eles cantam e, afinal, eles mesmos fazem parte desta massa que tinha que vender sua força de trabalho para viver.

Há muita música panfletária que só expõe os clichês e jargões das ideologias de esquerda. Mas, o que estes cantores folks fizeram é muito mais que isso. É uma coisa realmente viva, e você pode sentir em suas melodias, no modo como cantam, que tudo aquilo o que falam é vivo, com substância, e foi cravado em suas almas por uma vida cheia de dores e de sofrimento próprios da condição de trabalhadores. O folk foi uma forma, uma forma da classe trabalhadora expor seu sofrimento e suas dores, e condenar a condição em que vivia, e convidar seus companheiros de classe a se unirem à luta, a não aceitarem tanta exploração e sofrimento. Não gritavam jargões, mas apresentavam um ponto de vista único, vindo desde baixo, de quem tinha inteligência adquirida por terem vivido lá, no seio do monstro, conhecendo como ninguém as suas entranhas.

O folk quando canta sempre distorce a voz, em uma forma que para muitos brasileiros é insuportável, mas que expressa esta sensação de sofrimento em suas músicas. Mesmo as notas que saem do violâo, do banjo ou da gaita, são verdadeiros lamentos. No violão e nos backing vocals, por exemplo, o folk constantemente abusa da chamada TERÇA. Em uma harmonia, a quinta é que é a nota perfeita, aquela que se acomoda exatamente com a primeira nota. Mas, ao jogarem uma terça, criam um efeito, uma tensão, uma sensação de dissonância, mas não completa. Sempre no limite da música, como estiveram também na vida: no limite, na beira, no além, lá onde o capitalismo cobra da forma mais dura. Lá também, onde se aprende algo profundo sobre a vida.