quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

SOBRE PISCADELAS E ASSALTO A BANCO: UM ESFORÇO HERMENÊUTICo SOBRE O VELHO DURRUTI

 (Buenaventura Durruti)

Muitos de nós dizemos: sou contra a violência, sou contra qualquer ação ilegal. O povo pode se manifestar, mas por meios pacíficos e legais. E dessa forma reduzimos os nossos valores morais (o que definimos como certo e errado) aos limites do código penal. 

Eu acho isso uma limitação ao povo que sofre, pois muitas das conquistas sociais e mesmo políticas (direitos e liberdades) pressupõem necessariamente que antes não existiam e não eram permitidas. Mais ainda, que para serem conquistadas, foram feitas justamente ações que na época eram consideradas ilegais. 

Ninguém gosta de falar disso, mas se olharmos a história da educação no Brasil e no mundo, veremos que a educação dos operários dependeu, em muito, de ações ilegais do movimento operário anarquista. (veremos aqui o caso espanhol).

Mas, não quero convencê-los em defender ações ilegais. Longe de mim tal ideia. Quero apenas que aceitemos que a nossa capacidade de dizer o que é certo e o que é errado exige um esforço de compreensão do agir humano que extrapola em muito as definições do código penal. Em resumo, moral não pode se resumir à lei.

UM ESFORÇO HERMENÊUTICO

Gosto quando Geertz fala das piscadelas. Em síntese, com as minhas próprias palavras e algumas mudanças para tornar mais interessante e fácil, é mais ou menos assim. 

Imaginemos um homem que pisca porque tem um tique nervoso. E um outro homem ou uma mulher que pisca o olho para fazer uma cantada a um outro homem ou a uma outra mulher. 

Se tirássemos uma foto no momento exato em que fecham um dos olhos, não haveria diferença nenhuma entre as duas piscadelas. Mas, nós sabemos que, em termos de significado cultural, há uma diferença imensa entre piscar para cantar uma pessoa e piscar por mero reflexo nervoso. 

Nós descobrimos quão importante é compreendermos, diferenciarmos, bem os símbolos, essas piscadelas culturais, quando por não o fazermos bem confundimos e trocamos uma coisa por outra. Quando por exemplo, achamos que aquela garota que piscava por tique nervoso estava interessada em nós. Basta uma abordagem convencida para saber que a ausência de uma compreensão densa nos custará caro. 

Pois bem , hoje eu trouxe alguns relatos que narram algumas passagens da vida de Durruti, o operário espanhol do post passado. Os trechos são bem interessantes. Sei que muitos que lerão este texto condenam brutamente qualquer ação violenta e qualquer ação ilegal, tal como, por exemplo, um assalto a banco. Mas, lhes digo, leiam com atenção até o fim, e lhes desafio a me dizer se mesmo assaltos a bancos não necessitam de uma compreensão mais profunda: afinal, existem piscadelas e piscadeeelas.  

RELATOS RETIRADOS DO LIVRO O CURTO VERÂO DA ANARQUIA: 


DINHEIRO PARA A ESCOLA

Durante dez anos vivi precariamente, trabalhando como diarista, como ajudante numa forjaria e depois numa fundição; exerci mais ou menos uma dúzia de profissões diferentes até os vinte e oito anos, quando, meio sem querer, tornei-me professor. Não da universidade, mas de uma escola do povo, uma escola livre e gratuita em La Coruña, cidade que fica na Galícia, extremo noroeste da Espanha. Esta escola fora montada pelos sindicatos e pela CNT e era mantida pelos marinheiros, trabalhadores das docas e estivadores. O capital necessário para que iniciássemos as atividades fora conseguido por Durruti.

É claro que não fora obtido legalmente. Hoje posso afirmar tranquilamente: o dinheiro veio de um assalto. Não a um banco, mas a uma casa de câmbio. Durruti foi até lá e exigiu o dinheiro, com a pistola na mão. Houve um tiroteio, mas o sindicato recebeu a quantia necessária para iniciar as atividades da escola. Foi tudo o que aconteceu. 

Esse tipo de procedimento não pode ser julgado à luz do código penal burguês. O senhor veja bem, eu mesmo vivi situações em que estive a ponto de matar, se tivesse coragem para isso. É preciso ter visto a miséria, a terrível miséria que reinava na Espanha, para compreender o desespero desses homens e o motivo de suas ações. 
Gastón Leval
(P. 49-50)

A MÃE
Sua mãe dizia: 
___ Bem, neste caso eu acho que já não entendo mais o mundo. Nos jornais sempre dizem que Durruti fez isto ou aquilo, que estava aqui ou ali, mas toda vez que ele retorna para casa está vestido em trapos. Vejam só o estado dele! O que passa pela cabeça desses jornalistas? Tudo isso é mentira. Eles estão precisando de um bode expiatório. 

E vocês querem saber de uma coisa? Tudo isso era assim mesmo. Durante anos Durruti foi um demônio pintado em todos os muros da Espanha logo que acontecia alguma coisa num banco ou alguém explodia bombas. E sua mãe gritava: 

___ Isso não pode ser verdade. Toda vez que ele volta para casa eu tenho que costurar seus trapos, e nos jornais escrevem que ele tem pilhas de dinheiro. 

É certo que houve um monte de assaltos, mas o dinheiro que Durruti pegava com uma das mãos era passado adiante, com a outra, para as famílias dos prisioneiros e para a causa. Não há nada a esconder, vocês me entendem, não há nada de que nos envergonhar. 
Florentino Monroy 

O TRABALHO NA FÁBRICA

Ela se autodenominava "República dos Trabalhadores", mas o que fez com Durruti? Deportou-o para Bata, por vadiagem. Ascaso, Durruti e uma centena de outros foram deportados; eles, que ganhavam seu pão trabalhando nas fábricas durante toda a vida. Nunca foram como esses funcionários que ficam sentados o dia inteiro num escritório e recebem seus salários dos sindicatos. Durruti era a antítese do pelego: ele nunca recebeu nenhum tostão. 
Manuel Hernánde (p. 100-101). 

O ESPÓLIO
Era simplesmente inacreditável: ele não possuía nada, absolutamente nada. Tudo o que tinha era também de todos. Quando morreu, fiquei procurando algumas peças de roupa com as quais pudéssemos enterrá-lo. Por fim encontramos uma velha jaqueta de couro já inteiramente puída, uma calça de brim cáqui e um par de sapatos cheios de remendos. Em suma, ele era um homem que doara tudo o que possuía, não tinha mais nem um botão de camisa. Não possuia absolutamente nada. 
Ricardo Rionda Castro
(p. 300). 

Na bagagem de Durruti foram encontrados os seguintes pertences: um jogo de roupas de baixo, duas pistolas, um binóculo e um óculos de sol. Este era todo o seu inventário. 
José Peirats. 
(p. 300). 

Referência: 
ENZENSBERGER, Hans Magnus. O Curto Verão da Anarquia. SP: Companhia das Letras, 1987. 

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